Adeus, Labov! Linguaruda

segunda-feira, 23 dezembro 2024
Willian Labov, um dos linguistas mais eminentes do século XX. (Imagem: University of Pennsylvania)

Pesquisas do linguista estadunidense demonstram a relação constitutiva entre língua e dimensão social

(Cellina Muniz)

No dia 17 de dezembro, o mundo deu adeus a Willian Labov (1927-2024), um dos linguistas mais eminentes do século XX e nome fundamental para os estudos da sociolinguística.

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A sociolinguística é o estudo das variações linguísticas, isto é, formas diferentes para um “mesmo” significado, em um estado sincrônico da língua. Por exemplo, podemos falar “abóbora”, mas podemos falar também “jerimum” (sobretudo em solo potiguar). Esse simples exemplo, um dentre inúmeros em língua portuguesa, ilustra como os usos da linguagem são condicionados por fatores contextuais, como região geográfica, tal qual o caso acima, além, claro, de outros determinantes sociais, como idade, profissão, sexo/gênero, nível de escolaridade, classe social e situação comunicativa.

Como bem resume Ronald Beline Mendes, no texto “Língua e Variação”, o que Labov nos ensinou ao pensar a língua socialmente é que a língua falada é inerentemente heterogênea e que devemos nos formular duas questões básicas: i) se há duas ou mais formas de se dizer a mesma coisa, o que leva os falantes a empregar ora uma, ora outra forma?; e ii) qual é o significado social da variação linguística?

Teoria da Variação

Na década de 1960, enquanto prevalecia a perspectiva de uma “gramática universal” (sob influência de Noam Chomsky, em que as línguas são encaradas primordialmente como uma capacidade humana inata, biológica e cognitiva, de regras universais e invariantes), Willian Labov aplicava sua Teoria da Variação em Martha’s Vineyard e Nova Iorque, nos EUA, e comprovava, com minuciosos estudos pautados em entrevistas e comparações quantitativas, que por trás da aparente unidade da língua, vários subsistemas linguísticos se manifestavam, fosse em contextos fônicos, fosse em estilos de fala. Assim, a partir de trabalhos publicados como “The Social Strafication of English in New York” (1966), “Sociolinguistic Patterns” (1972) ou “Principles of Linguistic Change” (1994), a concepção de variação linguística – em que toda e qualquer língua apresenta um estado de coocorrência entre variantes – seria  aplicada incontornavelmente.

A variação linguística pode se manifestar em diferentes níveis da língua: fonético (os diferentes sotaques do português brasileiro, por exemplo); semântico (“boyzinha” e “moça”, por exemplo); morfológico (“Nós estamos tratando de linguística” e “A gente tá tratando de linguística”) e sintático (“Houve muitos problemas” e “Houveram muitos problemas”). Essas e outras variantes, como dito antes, têm seu uso determinado a partir de fatores correlacionados  extralinguísticos. E não só: cada um de nós, pessoas no mundo, não se comunica de maneira uniforme em qualquer lugar e a qualquer momento. Como resumem de maneira bem didática R.L. Trask e Bill Maybon:

Homens não falam como mulheres. Encanadores não falam como corretores de ações. Estudantes não falam como coronéis aposentados. Em um bar com seus amigos, pode ser que você diga “preciso mijar”, mas não faria isso conversando educadamente com as amigas mais velhas de sua mãe ou durante uma entrevista de emprego…

Norma Padrão versus variantes

No Brasil, há inúmeros estudiosos de vertente sociolinguística, cuja produtividade pioneira merece reconhecimento: Dino Preti, Fernando Tarallo, Rosa Virgínia Matos e Silva, Antony Naro, Dinah Calou, Dante Lucchesi, Marcos Bagno, dentre tantos outros. Sem mencionar colegas da UFRN e da UERN, cujos trabalhos são valiosíssimos para compreender a variação linguística e suas particularidades no português brasileiro, como os contextos de multilinguismo e línguas em contato, de diversidade linguística no ensino e de embates entre norma padrão versus variantes.

Autor do livro, Preconceito Linguístico: o que é, como se faz, Marcos Bagno é um dos estudiosos de vertente sociolinguística
(Foto: Nossa Ciência)

Além disso, o grande legado de Labov para os estudos da linguística, sem dúvida, é a compreensão do preconceito linguístico e, por conseguinte, seu combate. Depois do mestre estadunidense  e suas pesquisas em comunidades de fala que demonstram a relação constitutiva entre língua e dimensão social, é impossível conceber, cientificamente, que uma forma de linguagem seja mais “correta” do que outra. Em vez de cair nesses juízos de valor (que são ideológicos, culturais e sociais), cabe antes – sobretudo em sala de aula – identificar e descrever por que tais usos considerados “errados” pela gramática normativa (como o “houveram” exemplificado mais acima) ocorrem e em que condições sociais de uso.

Eis aí ainda um longo caminho a percorrer.

Salve, Labov!

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Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Cellina Muniz

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