O conhecimento científico que fica de herança para as próximas gerações deve ser a motivação dos cientistas do presente, por isso é preciso fazer uma ciência com personalidade, impressão digital e sotaque.
“…Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam
e cada gesto, cada olhar
cada vinco da roupa
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrine me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.”
Carlos Drummond de Andrade (Eu,etiqueta)
Drummond, sempre atual, segue para muito além do entendimento óbvio de sua obra. Eu, etiqueta, vale também para o comportamento daqueles que fazem ciência. Além da comparação comum entre instituições e suas “grifes” há uma tendência forte de busca pelos temas de pesquisa “da moda”. Os artigos são publicados nas revistas com melhor qualis, que nem sempre seguem a métrica dos fatores de impacto. Se Drummond via um ser humano coisificado, o pesquisador brasileiro segue carregado de índices relativos a instituição, curso de graduação, pós-graduação, ranking de aplicativos de gerenciamento de produção, bolsas de produtividade, fator H, entre outros. Para saber se uma palestra será boa, basta saber que o palestrante é um fator H 32!!!
E nesta coisificação indexada, as grandes instituições são erguidas e laboratórios com equipamentos de última geração passam a ser mais importantes do que as pessoas.
No entanto, já alertava Alan MacDiarmid (foto): “Science is people”. E as pessoas são sentimentos e paixões, sonhos e ambições, buscas e aflições. Isso tudo é difícil de quantificar. O brilho nos olhos de quem faz ciência não se mede assim tão facilmente. E os olhos de um pesquisador fator H 31 podem brilhar mais que um fator H 54. Ou vice- versa. O brilho pode acontecer nos melhores laboratórios do mundo ou entre os escombros de um país dominado pela corrupção.
O que importa, de fato, não é nenhum destes parâmetros. A ciência é feita pelo interesse em desvendar os mistérios da natureza, descobrir o novo, resolver os grandes mistérios da humanidade. Se o próprio Newton, que não reunia tantos atributos de humildade, admitiu que chegou onde chegou por que subiu no ombro de gigantes, isso significa que a construção do saber é anônima. E para ser anônimo, não precisamos de grifes ou marcas, índices ou fatores H. Não precisamos de assinaturas quilométricas no rodapé de nossas mensagens que remetam a respeitabilidade no mundo científico. Se em 100 anos já não seremos nem mais uma foto na estante, o que dizer de nossos fatores H e índices métricos.
Façamos uma ciência com personalidade, impressão digital e sotaque. Que seja pelas pessoas e não por nós. Afinal, somos todos passageiros. Quem fica é o conhecimento, herança para as próximas gerações.
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Helinando Oliveira
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