Os caminhos paralelos que mantêm a distância entre o mercado e a academia
O professor Gláucio Brandão aponta e discute três entraves à inovação nas universidades: a cultura de inovação incipiente, a dificuldade de conexão com o mercado e a produção acadêmica focada no currículo Lattes. O autor critica o distanciamento entre academia e mercado, questionando a eficácia do sistema atual e defendendo uma revisão no conceito de inovação.
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“Nenhum produto consegue sair melhor do que o molde”. (GBB-San, 2024).
Em junho passado, fui convidado para palestrar em evento na UFAL, cuja proposta temática era Educação empreendedora nas Engenharias: barreiras, entraves e desafios para a transformação local . Embora tenha sido uma sugestão da casa, claro que mantive o tema, pois tratava-se de um pedido formal do cliente. Sempre ajo assim.
Meu objetivo era o de apontar alguns obstáculos que dificultam a transformação mais rápida – e para melhor – da sociedade, para que os egressos do ensino superior pudessem desenvolver estratégias para suplantá-los, já que consideramos a universidade a ferramenta mais arrojada para promoção do progresso social, econômico e cultural.
Compondo a mesa, além de professores ilustres de universidades do Brasil, estava o Magnífico Reitor da UFAL, colega de longa luta em prol do despertar do empreendedorismo inovador nas universidades. Nesse evento, atuou como anfitrião e debatedor. Ressaltei isso para afirmar que aquilo que falo em sala de aula sempre transbordo para o mundo, e vice-versa. É um princípio. Assim, tudo que exponho sempre independerá da audiência e, ao mesmo tempo, terá ela como testemunha. Além do mundo acadêmico, a plateia contava com minha esposa e os três filhos. Estes, assim como os estudantes, vibravam com minhas falas. Percebi claramente que a esposa e os docentes nem tanto. Então, no que será que GBB-San tocou que deixou uma parte dos presentes efusivos e outra parte fechada? O que isso tem a ver com o molde e como consegui relacionar ao tema proposto? Qual o tamanho do risco acadêmico que este professor passou a correr, depois de uma drástica execução de uma decisão baseada no “molde”?
A frase que abre o texto parece uma constatação simplória. E é, se levamos em conta o conceito geral de produto como sendo o resultado de um processo de produção, seja ele natural ou humano. Contudo, e quando o molde são instituições e o “produto” pessoas, a coisa continua simples? Será que se consegue romper (ou perceber que se está dentro de um) o molde, a “ditadura” imposta por uma peça matriz? Ou seria Matrix, o filme?
A explicação para o tema desta AC e para a frase de abertura é o que delineio neste texto com pH valor 0 (solução extremamente ácida). Recomendo cautela e profunda reflexão para o que vem pela frente. Admito que, infelizmente até aqui, só consegui pontear três entraves, aqueles que mais me tocam. A estratégia ainda tem de ser elaborada e posta em prática.
Este entrave já foi registrado aqui, no Nossa Ciência, quando uma sequência de ACs me rendeu convites para “conversar” com o ex-reitor da UFRN à época e, pari passu, com a reitora daquele momento. O primeiro convite (fevereiro de 2019) chegou para que eu explicasse o que quis dizer com a AC Incubadoras universitárias: indo na contramão. O segundo (março de 2019), duas ACs depois, deveu-se ao título (pH valor 0) Inovação: conceito que a Universidade não compreendeu ainda . O bom é que tudo que escrevi, graças à memória da WEB, tá registrado. Basta ir lá e checar.
Dá pra imaginar o que os títulos sugerem, né não? Mas vou relembrar o que tem lá de forma enxuta, para que você não precise voltar cinco anos para ler: à época, quando eu achava que “brigar” e “lutar” eram a mesma coisa, defendia em um dos artigos que a incubadora não sabia ser empresa, e justamente por isso não podia cobrar o que não entendia de uma startup. No outro artigo deixei explícito que inovação sem royalties é apenas coisa pra botar na plataforma Lattes. Não serve pra muita coisa. Passados cinco aninhos, não sei se as coisas mudaram muito. Sendo eu e outros colegas arautos desse movimento aqui dentro, ter implantado a primeira incubadora em 2007, marco da cultura de inovação da UFRN, posso dizer, peremptoriamente, que depois de 17 anos ainda não temos esta cultura estabelecida. Nossas incubadoras (nível Brasil) ainda não são superavitárias, e as patentes, com pouquíssimas exceções, saltam do Lattes e transformam-se em royalties para quem as desenvolveu.
Esse entrave possui duas bandas. De um lado, os pesquisadores das UF’s (universidades federais) que optam pela entrega total à tríade ensino e pesquisa e extensão, pilares sobre os quais residem a academia, têm que optar pelo regime de dedicação exclusiva, conhecido por DE. Como resultado estão, praticamente, proibidos por lei de possuírem empreendimentos. As leis admitem, em tese, a possibilidade de um professor DE ser sócio de um empreendimento, desde que não se envolva com a gestão do negócio. Na prática, entretanto, aqueles que ousam fazê-lo são malvistos pela corporação, sendo obrigados a optar por estar aqui, ou lá. Optando por “cá”, ficam sem conhecer o mercado. Optando por “lá”, perdem o traquejo científico, aquele capaz de promover mudanças com método.
Por outro lado, as grades (literalmente) das disciplinas possuem a mesma flexibilidade da disposição dos docentes em mudá-las. Ou seja: muito lentamente. Em alguns casos, se dá quando o docente for substituído por outro, o que pode levar até trinta anos. As disciplinas envelhecem; o mercado não. Como consequência, passa-se um conteúdo aos discentes que dificilmente se encaixa à realidade hodierna, seja esta social, tecnológica ou mercadológica. Não vou encher este espaço raro com as estatísticas que encontrei. Basta o leitor dar uma procurada na Internet com palavras-chave do tipo: apagão tecnológico, defasagem educacional, acompanhamento e encaixe no mercado, empregabilidade etc., e terá ideia do tamanho do rombo. Ou melhor, da desconexão entre academia e sociedade.
Já colocando o dedo na ferida, a academia brasileira vangloria-se de produzir centenas de patentes. Infelizmente, como eu expliquei na AC ácida sobre o conceito de inovação não compreendido, elas raramente são convertidas em inovação. Pois, se assim o fosse, poderíamos contabilizar por royalties ou contratos de cessão recebidos. Não acontece. Quem nomeia qualquer evento por inovação é o mercado ou a sociedade. Mais ninguém. Não é um conceito auto-imputado. Como resultado, as patentes geradas “morrem” nos Lattes Brasil afora. Desde que me entendo por docente (2001 – 2024), a Universidade nunca teve, não tem e nunca terá perfil inovador. É, entretanto, uma excelente fábrica de invenções, matéria-prima utilizada na inovação. Esta designação, embora errada, está longe de ser negativa. Pelo contrário: basta mudarmos o nome para invenção e a academia volta a brilhar. É este conceito que a academia tem de voltar a flamular.
Este apócrifo de Confúcio marcou o momento da palestra em que vi os docentes cravarem os dedos nas poltronas, os estudantes mostrarem-se aturdidos, rirem ou virarem para o lado, comentando uns com os outros sobre minhas, possivelmente, “heresias acadêmicas”. Minha esposa, ao fundo do anfiteatro, ficou rubra ao mesmo tempo que olhava para todo lado procurando a porta de saída.
Depois de conversar profundamente sobre alguns entraves, a frase do filósofo chinês indicava o final da palestra. A ideia era mostrar que não estava brincando; que faço o que digo e “versa-vice”. Fui direto ao ponto. Entre outros vocábulos emiti a frase: “… e foi por isto que apaguei meu currículo Lattes!”. Depois corrigi para “… apaguei o que consideram produção, cerca de 50 artigos indexados, que mais pesavam do que contribuíam para o meu perfil inovador!”. Brabo, né não? Deixei apenas três, os que comprovam minha dissertação de mestrado e tese de doutorado. Duvida? Então basta acessar meu currículo na plataforma e constatar o que digo.
Claro que não recomendo a quem tenha aspirações acadêmicas cometer uma sandice desta monta. “Fi-lo porque qui-lo”, por estar no ponto mais alto da carreira, Professor Titular, e para me libertar daquilo que sempre considerei um molde: o currículo Lattes. Coloquei, literalmente, minha cabeça a prêmio. Embora muitos colegas tenham me alertado para este “sincericídio” acadêmico, isso pouco importa, pois, finalmente me sinto livre para tocar o tema inovação adiante sem sentir aquela pontinha de hipocrisia. Deixo a ciência para os cientistas, e posso afirmar em um tom jocoso que quem Lattes não inova!
O insight para esta AC me ocorreu ontem (10/09/24), quando contemplava a centena de formandos perfilados durante a colação de grau da turma 2024.1 da ECT-UFRN. Fomos, colegas e eu, convidados como professores homenageados. Ali, olhando para o presente, me perguntava o tempo todo sobre o futuro: Será que sairão como nós? Será que impusemos uma matriz inquebrável? Como formaremos inovadores se imprimimos nosso perfil neles? Será que conseguirão, pra nossa sorte, quebrar a maldição do molde?
Cabe a nós, docentes, servidores e discentes, atuando no mundo real, a nobre e sustentável missão de sempre ajustar o molde, ou, pelo menos, sinalizá-lo, para que aqueles que nos seguem o façam. De outro modo, como promovermos melhorias, nossa própria evolução?
Leia o texto anterior: Pense dentro da caixa
Gláucio Brandão é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e gerente executivo da incubadora inPACTA (ECT-UFRN)
Gláucio Brandão
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