Não basta definir o produto e o modelo de negócios, é preciso se colocar no lugar do cliente e do empreendedor
Por estes dias, em uma de nossas aulas sobre desenvolvimento de produtos no Mestrado de Inovação, havíamos acabado de fechar o produto em si, definir o modelo de negócios da startup (ainda não posso dizer o nome) e, simplesmente, empacamos: “e agora José, o que está faltando?”. Segurem a pergunta por enquanto!
Neste semestre, adotei ministrar as aulas de graduação e mestrado – que envolvam negócios – na inPACTA, nossa incubadora, para introjetar de forma nada subliminar o clima empreendedor nas mentes dos alunos. Por pura sorte, que já está se tornando uma praxis, mantemos a sala Karl Popper aberta, deixando o vento de Capim Macio arejar nossas ideias. Em fazendo isto, consultores e empreendedores que circulam por lá sempre dão uma “espiadinha” para dentro da sala com a intenção de falar conosco ou nos cumprimentar e, geralmente, ficam curiosos, entram, sentam-se e, corriqueiramente, melhoram a aula. Em uma dessas horas de “empacamento”, eis que o consultor da inPACTA (chamamos esses mestres de advisors) na área de comportamento corporativo, Leonardo Galvão, nos dá o ar da graça e, já que a sala e a aula são abertas a ideias, chega, puxa uma cadeira e, vendo todo mundo com a mão no queixo, puxa nosso brainstorming para o outro lado do Pacífico. “Porque é que vocês estão calados, admirando o quadro cheio de garranchos?”, pergunta o homem. E a resposta sou eu quem dou: “Travamos!”. E ele continua: “Porque, se vocês têm o produto e o modelo de negócios? Praticamente têm tudo… e, óbvio, já descreveram a jornada do cliente!”. Todos na sala se entreolharam e perguntaram: jornada do cliente???
Pois bem: havíamos preparado o campo, as jogadas e esquecido de avisar aos russos! Não é preciso dizer que a aula tomou outra dimensão, ou ganhou uma! Também não é à toa que a sala de “quebra de ideias” chama-se Karl Popper. Se nenhuma ideia deve durar mais do que o produto, esse é o lugar.
Jornada do cliente
A palavra agora estava com nosso advisor, o mestre Galvão. E ele, que não é tímido (toca cavaquinho e nas horas vagas orienta empresas como psicólogo), conduziu a aula a partir daí. “A jornada do cliente é essa experiência que os consumidores têm com a sua marca por toda a vida. Começa quando o produto é apresentado ao interessado e vai da aquisição até muito além do pós-venda”, disse o homem.
Então começamos a compreender que o produto e o modelo de negócios precisavam ser percorridos minuciosamente e primeiramente por nós antes de ser levado ao cliente. Não basta apenas perceber o nicho de Mercado e criar o produto com o público alvo, o que chamamos de cocriação. Tem-se que se percorrer o caminho imaginário – de preferência em um quadro branco – através de fluxogramas e rabiscos, de modo a evidenciar todos os possíveis gargalos que possam vir a surgir. “Não basta conhecer o caminho, Gláucio-San. Você tem de percorrê-lo” (ditado budista). Resumindo a ópera: tínhamos que ser nossos primeiros clientes.
O caminho virtual (V) e o caminho físico (F)
Depois de algumas noites entre as aulas, nos reunimos para trabalharmos o recém absorvido conceito. Elias Júnior (eita, entreguei o nome do cara da startup!) sentou-se à frente do PC para desenhar a jornada do cliente – o quadro havia sido a primeira opção, mas os hieróglifos, mesmo sendo a escrita dos deuses, estavam além da compreensão de Zeus – e fomos traçando a jornada. E, como sempre cultuamos nessa coluna que “o ato de fazer separa o empreendedor raiz do simulador nuttela” – (Criando um Canvas inovador), começamos a perceber coisas que nunca esperaríamos encontrar sem esse exercício: em tempos de Internet, não existe um jornada do cliente, mas duas. Só começamos a avançar de fato quando desconectamos o cliente físico do cliente virtual. Por incrível que pareça, são entidades distintas, e é por isso que empreendedores experientes cometem o erro de não tratar o cliente contemporâneo como, na verdade, dois. O cliente hodierno é, literalmente, bipolar!
Infelizmente, não dá para colocar aqui a jornada que desenvolvemos, pois se tornou a alma do negócio de Elias. Podemos, entretanto, colocar um rascunho, para que vocês criem as próprias jornadas.
No começo, quando pensávamos de modo unipolar, identificávamos os clientes e desenvolvíamos a solução. O cliente, cativado por nossa resolução, reagiria em direção à solução mais disponível, a qual poderia ser a nossa ou não. Ou seja: todo nosso esforço poderia ser destinado facilmente a outro player. Atuávamos como tração para os outros. Daí essa reação ter o caráter aleatório.
À medida que quebrávamos a cabeça, percebemos que nosso cliente tinha essa reação devido às várias startups que ofereciam soluções parecidas. Resultado: desenvolvemos a jornada virtual sem deixar margem para o cliente pensar em outra startup “salvadora” que não fosse a nossa. Assim, a Startup (F) oferecia a solução para o cliente e oferecia como caminho de volta a Startup (V). Claro que as duas Startups (F = física e V = virtual) têm de ser a mesma. Bingo! Temos o nosso cliente de volta e fazemos tração para nós mesmos.
A jornada do empreendedor
De uma interdição psicológica de um advisor, percebeu-se que temos de agir de forma bipolar. Trocando em linguagem empreendedora, a jornada para engajar clientes consiste em perceber que o empreendedor tem de agir como o próprio cliente, de modo a ressaltar aquilo que se poderia encontrar antes mesmo de o cliente saber o que iria acontecer. Ufa!
Assim, uma aula que começou com uma proposta de valor e um modelo de negócio, descambou para a jornada do cliente e findou em um trajeto psicodélico chamado Jornada do Empreendedor!
Ou seja, o empreendedor tem de promover sua própria dissociação da realidade. E aí Galvão, tenho salvação?
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Leia a edição anterior: Professor, o que é “biai”?
Gláucio Brandão é gerente executivo da inPACTA, incubadora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Gláucio Brandão