Segunda parte da entrevista com o biólogo Maxwell Morais de Lima Filho, professor da UFAL
Nessa segunda parte da entrevista com o professor Maxwell Morais de Lima Filho do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), ele apresenta e explica suas convicções em torno de autores como Richard Dawkins e Stephen Gould. Ainda em debate a Biologia Evolutiva de Charles Darwin, o criacionismo e outros conceitos.
Coluna do Jucá: Professor, ao se polarizar concepções, criam-se bolhas. Perde-se assim a oportunidade do debate. Para Richard Dawkins, a Religião é incompatível com a Ciência. Já para Stephen Jay Gould, os dois assuntos são inteiramente diferentes e igualmente vitais, embora ele acreditasse que o possível tom conciliatório entre ambas não implicasse em unificá-las. Dawkins é muito mais popular entre os leigos nesse assunto, como consequência sua obra teve muito mais alcance para esse público. O exemplo disso é o famoso livro O Gene Egoísta. Já Gould, quando comparado àquele, é bem menos conhecido entre os leigos. A despeito do papel imprescindível de divulgação e popularização do darwinismo, você não acha que as concepções de Gould, menos polarizadas e extremistas, e igualmente brilhantes, teriam um poder mais empático, e consequentemente de maior alcance para a compreensão do darwinismo do que as de Dawkins?
Maxwell Morais de Lima Filho: Podemos apontar algumas semelhanças compartilhadas pelos dois melhores divulgadores da Biologia da segunda metade do século XX – Richard Dawkins e Stephen Jay Gould: ambos nasceram em 1941, são apaixonados pela Biologia Evolutiva, têm Charles Darwin como herói intelectual e possuem mais de uma dezena de livros vertidos para o português. A despeito de Gould ter falecido em 2002 e de não sabermos o montante de livros vendidos, também podemos considerá-lo popular no Brasil. No entanto, concordamos que Dawkins supera Gould em popularidade junto ao público leigo e é provável que, em boa medida, isso se relacione ao tratamento belicoso dispensado pelo biólogo queniano à Religião, notadamente após 2006, ano de publicação de Deus, um Delírio. Vislumbramos as divergências entre Dawkins e Gould quando pensamos no quadro proposto pelo físico e teólogo Ian Barbour no livro Quando a Ciência Encontra a Religião. De acordo com esta obra, são quatro os tipos de relação entre Religião e Ciência, a saber: (i) conflito, (ii) independência, (iii) diálogo e (iv) integração. Como vimos anteriormente, Dawkins salvaguarda uma abordagem conflituosa na qual a racional, benéfica e útil Ciência seria suficiente para descartar as incongruentes, perniciosas e imprestáveis ideias religiosas. Por sua vez, Gould defende a perspectiva de que os magistérios religioso e científico seriam não interferentes (MNI), isto é, seriam esferas independentes da cultura humana: enquanto a Religião se debruça sobre temas éticos e de sentido último, a Ciência especula sobre o Universo e propõe teorias para desvendar os fenômenos naturais. Dessa maneira, o biólogo estadunidense considera equivocada a posição neoateísta de Dawkins quando este empunha a racionalidade científica para combater a fé religiosa.
No outro extremo, figuraria como inaceitável a leitura bíblica literal feita pelo criacionista de Terra Jovem com o intuito de afirmar que o Universo tem poucos milhares de anos e de negar a macroevolução das espécies biológicas. Ressaltamos que existiram, existem e sempre existirão divergências no campo científico. Só para ficarmos restritos aos biólogos supracitados, mencionemos que Gould propôs o equilíbrio pontuado, é um ferrenho crítico do adaptacionismo, nega a existência de progresso evolutivo e defende que os magistérios da Religião e da Ciência não são interferentes; Dawkins se contrapõe ao paleontólogo de Harvard em todos esses tópicos. Independentemente de qual perspectiva seja a correta, pensamos que o mais relevante é compreender que o debate é salutar e agradecermos pela oportunidade de acompanhá-lo através das talentosas penas de ambos. Ratificamos que, a despeito das discrepâncias teóricas, os dois denunciaram o caráter anticientífico do Criacionismo de Terra Jovem e do Design Inteligente e são, portanto, desfavoráveis ao seu ensino em aulas de Ciência e Biologia. Dessa maneira, julgamos que as Universidades devem prezar pela formação qualificada e continuada dos professores de Ciências e de Biologia, e que estes, por sua vez, têm a incumbência de se apropriar dos livros, dos vídeos e das redes sociais para desenvolver o interesse dos estudantes pela atividade científica. Logo, constatamos que a sólida formação docente – auxiliada por fontes confiáveis de informação – trará resultados positivos ao ensino-aprendizagem no campo das Ciências da Natureza. Vale a pena mencionar também que, infelizmente, um número significativo de cientistas ainda enxerga a divulgação científica como uma atividade menor se comparada ao desenvolvimento da pesquisa e à publicação de artigos em periódicos especializados. Por mais importantes que sejam as traduções das obras de Mayr, Wilson, Dawkins e Gould, precisamos urgentemente incrementar a popularização científica tupiniquim, bem como transmitir aos mais jovens os feitos realizados pelos pesquisadores brasileiros. Poderia contribuir, nesse sentido, a maior valorização das próprias agências de fomento à pesquisa às atividades curriculares que envolvam a divulgação científica.
Coluna do Jucá: Os conceitos darwinianos (descendência com modificações, ancestralidade comum, variação populacional, seleção natural etc.) são relativamente mais simples quando comparados àqueles relativísticos de Einstein (espaço-tempo, singularidades, Relatividade Restrita e Geral). Apesar disso, as ideias de Einstein são unânimes mesmo entre os leigos, já as de Darwin muitas vezes são execradas. Como isso não bastasse, o darwinismo foi deturpado na visão de muitos, que o utilizaram ignorantemente como base científica para justificar a eugenia e o darwinismo social. Como explicar tanta incompreensão e distorção?
MLF: Em 1905, quando era um jovem empregado do Escritório de Marcas e Patentes de Berna, Einstein publicou cinco artigos científicos, inclusive um que versava sobre o efeito fotoelétrico – que o laurearia com o prêmio Nobel de Física de 1921 – e outro que defendia a constância da velocidade da luz e que expressava na famosa fórmula E = mc2 a relação entre energia, massa e velocidade luminosa; passados dez anos, o físico alemão propôs a Teoria da Relatividade Geral para defender que a gravidade é uma propriedade do espaço-tempo. Acontece que o mencionado efeito fotoelétrico contribuiu para o surgimento da Mecânica Quântica, Ciência que tanto seria criticada por Einstein por ele discordar que fosse probabilística a descrição última da natureza. Discussões vão, discussões vêm e chegamos ao seguinte quadro atual: apesar de tanto a Mecânica Quântica quanto a Teoria da Relatividade serem exitosas na explicação dos fenômenos naturais, os físicos não conseguiram – até o momento – unificá-las de maneira consistente, visto que o modelo padrão, que se propõe a unificar as forças fundamentais – força eletromagnética, força nuclear forte, força nuclear fraca e força gravitacional –, não contempla esta última. Grosseiramente falando, é como se tivéssemos uma Microfísica e uma Macrofísica que, até o presente momento, não podem ser descritas pelo mesmo arcabouço teórico. Nesse quesito, temos uma situação mais confortável nas Ciências Biológicas, pois a Biologia Evolutiva desempenha o papel de eixo unificador do domínio vivo. Se quisermos ser personalistas, poderíamos dizer que Darwin estabeleceu um animado diálogo evolutivo entre microbiologistas, botânicos, zoólogos, embriologistas e ecólogos; se é que é possível a unificação na Física, esta Ciência permanece à espera de um “Darwin” que demonstre que há uma linguagem mais profunda conectando as quatro forças fundamentais da natureza. Além disso, não esqueçamos que duas imagens nos vêm imediatamente à cabeça quando pensamos no pai da Teoria da Relatividade: seu órgão gustativo e a fórmula E = mc2. Ora, temos de convir que as pessoas que compreendem essa relação entre energia, massa e velocidade da luz são numericamente inferiores aos indivíduos capazes de explicar o mecanismo de seleção natural. Nesse caso, a imperícia matemática paradoxalmente gera uma aceitação decorrente da incompreensão: como não somos capazes de tecer comentários, aceitamos inopinadamente o que dizem os físicos. Algo diverso ocorre com boa parte da Biologia, e isso é bom por não afugentar os leigos interessados; todavia, o reverso da medalha é que alguns dispensam o estudo sério e se acham no direito de emitir juízos sem fundamentação e que vão na contramão do que dizem os especialistas pelo simples motivo de se tratar apenas de uma teoria. É verdade que a Biologia Evolutiva é somente uma teoria, mas podemos dizer exatamente o mesmo da Mecânica Quântica e da Relatividade. Em realidade, Ernst Mayr defende que o paradigma de Darwin é composto das seguintes teorias: (i) evolução propriamente dita, (ii) descendência comum, (iii) gradualismo, (iv) multiplicação das espécies e (v) seleção natural. O biólogo alemão certifica que esse paradigma não constitui um bloco indissolúvel, como restou demonstrado em meados do século XIX pelos poucos cientistas que invocavam a seleção natural para explicar o fato maciçamente aceito de que as espécies evoluíam. Chamamos a atenção para o fato de que, antes da publicação d’A Origem das Espécies, Herbert Spencer já havia desenvolvido uma concepção evolucionista da sociedade, razão pela qual seria cronologicamente correto estarmos cientes que o evolucionismo social precedeu o darwinismo social – aliás, provém do filósofo a expressão “sobrevivência do mais apto” utilizada pelo naturalista. De toda forma, é inegável que foi a deturpada leitura do opus Magnum de Darwin levada a cabo por alguns cientistas sociais que desembocou na postulação de uma suposta hierarquia humana e de uma presumível luta inter-racial pela existência. Apesar de deplorável, não causa surpresa que uma teoria concebida por caucasianos com certo poder aquisitivo privilegiasse a raça branca, condenasse a pobreza e atentasse para o controle de natalidade.
O estrago causado por esse tipo de pensamento foi potencializado ao ser apadrinhada como política de estado e levar à morte de aproximadamente seis milhões de judeus no regime nazista. Não podemos ignorar que o fato de a Alemanha da Segunda Guerra ser uma potência artística, científica e econômica não constituiu um impedimento para que a sociedade germânica como um todo participasse ativamente de um assassinato étnico em massa. Talvez lancemos alguma luz nessa incompreensão e distorção teóricas se refletirmos rapidamente sobre dois pontos. Em primeiro lugar, é incontornável o fato de que a Ciência se vale da linguagem metafórica – mais do que isso, a atividade e a comunicação científicas seriam impraticáveis sem a utilização de metáforas. Dois bons exemplos empregados pelo próprio Darwin são a seleção natural e a luta pela existência: tanto a natureza não seleciona nada ao pé da letra quanto é possível que a colaboração entre indivíduos ou espécies represente figurativamente uma “luta pela existência”. Em segundo lugar, o fato de sermos continuum à natureza implica em redutibilidade e total confinamento à esfera biológica? Não necessariamente. Como expusemos, mesmo um ultradarwinista empedernido como Richard Dawkins julga que a cultura não é geneticamente determinada, razão pela qual não há nenhuma incompatibilidade em explicar geneticamente um comportamento egoísta que é moralmente condenável. Sabemos, evidentemente, que não é o caso, mas, apenas a título de experimento de pensamento, mesmo se fosse corroborado que a “raça” branca é biologicamente superior à negra, isso não embasaria eticamente a discriminação, a escravidão e o assassinato. Finalmente, acreditamos que a mesma Biologia Evolutiva que revela o parentesco das espécies e que ensina que somos umbilicalmente africanos poderia nos guiar – embora seja incapaz de nos obrigar – na preservação da biodiversidade e na valorização da fraternidade, tendo em vista que as mulheres e os homens sábios formam a única espécie capaz de reverter a destruição da nossa Casa.
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Leia o texto anterior: A filosofia da biologia – parte 1
Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá
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