Conheça o pensamento e as opiniões do biólogo Maxwell Morais de Lima Filho sobre evolução das espécies, religião, ciência e muito mais
A entrevista dessa edição foi realizada com Maxwell Morais de Lima Filho, professor do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e está dividida em duas partes. Maxwell é biólogo, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e se interessa por tópicos da Filosofia da Mente, da Filosofia da Religião e da Filosofia da Biologia. É coordenador do Programa de Residência Pedagógica do Curso de Filosofia, co-coordenador do Grupo de Estudos Sobre Evolução Biológica, integrante do Grupo de Pesquisa Linguagem e Cognição, do Grupo Subjetividade no Pensamento Contemporâneo e do Grupo de Pesquisa em Filosofia da Religião.
Coluna do Jucá: Edward Wilson, um dos mais renomados biólogos da atualidade, considerado o “Papa” da biodiversidade e o fundador da sociobiologia, defende, no seu livro “A Criação”, a ideia de que a salvação da biodiversidade, e consequentemente do Planeta, está no entendimento entre a Ciência e a Religião, e que não há nada mais prioritário para ambos. Para tanto, o autor faz um apelo em forma de carta para um pastor – que na verdade representa todas as Religiões – com o intuito de salvar a vida no Planeta, já que a mesma nunca esteve tão ameaçada. Apesar do tom conciliador do autor, a questão é polêmica uma vez que a própria visão acerca da “criação”, seja por parte da Ciência, seja da Religião, fundamenta-se em princípios contrastantes. Você acha válido esse apelo, ou que o mesmo se insere apenas no campo da retórica?
Maxwell Lima Filho: Edward Wilson inicia o livro A Criação relatando que foi crente quando jovem e que posteriormente adotou o humanismo secular, o qual consiste na postura de que a existência humana está confinada ao Universo; essa abordagem rejeita a vida após a morte – e, portanto, rechaça tanto as benesses celestes quanto as punições infernais –, e sustenta que a Ética prescinde de Deus, de livro revelado e de Religião por ser exclusivamente fundamentada em bases racionais. Todavia, a visão naturalista de Wilson não o impede de utilizar a linguagem metafórica para alegar que a contingente racionalidade humana desvela o que subjaz o Universo como um todo e a Criação em particular. Portanto, apesar de não estarmos diante de um Cosmo transcendentalmente criado do nada pela ação divina, a importância dessa porção imanente e viva da Natureza seria o suficiente para que religiosos e humanistas deixassem de lado suas cosmovisões discordantes para salvar a Criação. É interessante notarmos que às nobres justificativas de respeito à obra divina e de preservação da biodiversidade, poderíamos acrescentar o simples egoísmo especista como motivação conservacionista: caso persistam a devastação ambiental e o irreversível desaparecimento de espécies biológicas, a humanidade se extinguirá amanhã. Enfim, a importância do apelo reside no reconhecimento de Wilson de que a Religião e a Ciência devem se dar as mãos para solucionar esse grave problema e preservar a Criação porque são ineficazes isoladamente.
Coluna do Jucá: A Filosofia é uma ferramenta intelectual na qual os seus limites vão ao encontro do que é possível cognitivamente para a mente humana. Muitas questões filosóficas, inclusive, não são abraçadas pelo empirismo, o que lhe permite adentrar, por exemplo, no universo metafísico. As ideias de Darwin, por sua vez, como nenhuma outra de cunho científico, têm muitas implicações não apenas biológicas, como também antropológicas, sociológicas, filosóficas e até religiosas. Nesse contexto, a Filosofia é imprescindível para o entendimento do darwinismo?
MLF: A descoberta do mecanismo de seleção natural precede em mais de duas décadas a publicação d’A Origem das Espécies, em 1859. Para Charles Darwin, a seleção natural consistia na principal explicação do processo evolutivo e punha em xeque o argumento do desígnio exposto no livro Teologia Natural, de William Paley. Em contraposição, Darwin insiste que o surgimento das espécies a partir de uma espécie ancestral e a elucidação de suas características anatômicas, fisiológicas e comportamentais são naturalisticamente embasados: como os indivíduos de uma população divergem entre si e os recursos são exíguos, aqueles que possuem determinadas características levarão vantagem na luta pela existência no sentido de aumentarem a chance de sobreviver, de se reproduzir e, portanto, de repassar à prole os caracteres favoráveis; a modificação populacional resultante desse processo ao longo do tempo é o que conhecemos por evolução biológica. Se é verdade que a espécie humana é nominada rapidamente ao final de sua obra magna, não nos esqueçamos que Darwin argumentou no livro A Origem do Homem e a Seleção Sexual a favor de nossa raiz biológica, sem invocar nenhuma entidade transcendente para explicar os fenômenos do domínio vivo e mostrando que a Ciência deve se circunscrever à esfera natural. Esse naturalismo metodológico acarreta um naturalismo metafísico, isto é, implica necessariamente na tese ontológica de que inexistem entidades sobrenaturais? Não. Essa distinção nos indica que o debate sobre a existência ou inexistência do sobrenatural – Deus(es), anjos, demônios, almas etc. – fica a cargo da Filosofia, e não das Ciências Naturais. O Agnosticismo de Thomas Huxley, o Criacionismo de Terra Jovem de Paul Nelson, o Evolucionismo Teísta de Teilhard de Chardin, o Design Inteligente de Michael Behe e o Ateísmo Evolucionista de Richard Dawkins inevitavelmente se comprometem com teses filosóficas para alicerçar a suspensão do juízo, a defesa ou a negação do sobrenatural. Isso posto, ressaltamos que alguns filósofos se debruçam sobre conceitos e questões fulcrais para a Biologia: O que é vida? A Biologia é redutível à Física? Existem leis biológicas? O que é uma espécie biológica? Em que nível atua a seleção natural? Há progresso evolutivo? É possível explicar a moralidade evolutivamente? A discussão desses assuntos, sobretudo a partir da década de 70 do século passado, foi responsável pelo surgimento de um subcampo da Filosofia da Ciência chamado de Filosofia da Biologia. Bastante ilustrativo são os capítulos do livro de David Hull, Filosofia da Ciência Biológica, publicado originalmente em 1974: (1) Redução da Genética Mendeliana à Genética Molecular, (2) A Estrutura da Teoria Evolucionista, (3) Teorias Biológicas e Leis Biológicas, (4) Teleologia e (5) Organicismo e Reducionismo. Pensamos que a pesquisa de excelência em Bioquímica, Microbiologia, Botânica, Zoologia, Biologia do Desenvolvimento, Ecologia ou Evolução pode ser feita – e comumente é realizada – sem necessitar de um conhecimento filosófico, mas julgamos que tal discernimento é de grande valia para o biólogo que deseja compreender mais profundamente a terminologia e a conexão conceitual de sua disciplina. Nesse sentido, o cientista que testa a quantidade de fármaco capaz de matar metade dos camundongos de um experimento – dose letal média (DL50) –, não terá dificuldade em reconhecer qual animal permanece vivo, por mais que não saiba conceituar o que é vida. Por mais irônico que isso seja, é provável que um número astronômico de biólogos em todo o mundo nunca tenha se dedicado seriamente a estudar o conceito central de sua Ciência.
Coluna do Jucá: Ao se referir aos replicadores culturais, Dawkins exemplifica tanto os memes científicos quanto os religiosos. Enquanto estes são classificados como venosos e perniciosos, àqueles são atribuídos valores bons e úteis. Do ponto de vista lógico, essa classificação, ao ser feita às avessas por outro indivíduo, por exemplo, não teria o mesmo valor, a depender do interesse na replicação cultural que se quer propagar? Ou seja, é uma ferramenta de argumentação ineficaz, por mais embasada e factível que seja?
MLF: Explicações naturalistas da Religião foram defendidas por Ludwig Feuerbach, Karl Marx e Sigmund Freud e o pensamento evolutivo foi proposto como pano de fundo explanatório da cultura humana por Herbert Spencer, Donald Campbell e Edward Wilson. Em maior ou menor grau, a concepção naturalista evolutiva de Dawkins é herdeira dessa tradição por sustentar que a cultura – nosso grande diferencial perante as demais espécies – evolui darwinisticamente pela seleção dos memes ou replicadores culturais. Etimologicamente, o termo meme foi cunhado a partir da palavra grega mímesis, relacionada à imitação. A transmissão memética ocorre quando cantarolamos a música que acabamos de escutar, recontamos uma piada aos amigos ou seguimos os passos para montar um origami, sendo muito célere se comparada à evolução genética: o padrão genético do caçador-coletor, do homem agropecuarista e do Homo technologicus permanece virtualmente o mesmo, a despeito das profundas transformações culturais pela qual passamos nos últimos milênios. Por conta disso, o biólogo nairobiano advoga que devemos considerar a Memética – e não apenas a Genética – se quisermos entender a evolução humana: se o tipo sanguíneo, a cor dos olhos e o tipo de cabelo são elucidados pela sobrevivência diferencial de nossas entidades genéticas, necessitamos dos memes para apreender a difusão das ideias artísticas, religiosas, filosóficas, políticas e científicas que constituem a civilização humana. No livro O Gene Egoísta, em 1976, Dawkins utiliza a Ciência – e não a Religião – para exemplificar inicialmente a disseminação de replicadores culturais que ocorre quando o cientista difunde uma boa ideia em suas aulas, suas palestras e seus artigos; apenas posteriormente é que ele se refere ao elevado grau de sobrevivência e ao poder de contágio do meme-Deus. Já podemos entrever n’O Gene Egoísta a distinção qualitativa existente entre a propagação de uma boa ideia científica em relação à proliferação contagiosa do meme religioso. Em escritos ulteriores, ele desenvolverá a tese de que os memes científicos se submetem à análise racional, enquanto os ilógicos memes religiosos nada mais são do que vírus da mente – ideias venenosas, parasitárias e arbitrárias que infectam cérebros vulneráveis, principalmente os infantis, que seriam verdadeiras esponjas meméticas. Dito isso, podemos mencionar duas críticas lançadas pelo biofísico e teólogo Alister McGrath à Memética: (i) usando os mesmos pressupostos, poder-se-ia afirmar que o ateísmo se alastra memeticamente e, assim sendo, sua (in)validade seria equivalente à irradiação religiosa; (ii) por não haver um critério natural para estabelecer a “bondade” e a “utilidade” de um replicador cultural, a argumentação de Dawkins de que o meme-Deus é danoso e supérfluo seria circular por pressupor seu valor subjetivo em relação à Religião.
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Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá
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