815 milhões de pessoas passando fome no mundo – esse é o retrato da fome. Não deixar ninguém para trás é o objetivo do Dia Mundial da Alimentação
O Dia Mundial da Alimentação foi celebrado em 16 de outubro. A data faz referência à fundação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), há exatos 73 anos. Embora represente um marco histórico, sua pauta mais recente destina-se a reverberar, por todos os continentes, o compromisso político firmado pela comunidade internacional com o propósito de erradicar todas as formas de desnutrição e alcançar a fome zero no mundo, em 2030. Porém, a tomar pelo contexto político, econômico e social em que vive grande parte da população mundial, e, considerando-se a proximidade do prazo, o alcance dessa meta, infelizmente, deve ficar apenas nas histórias de ficção científica.
O mesmo não se pode dizer da Revolução Agrícola, que representou um grande salto para a humanidade. Talvez, o maior deles. Essa suposição está longe de ser considerada um exagero, embora permeiem em torno dela inúmeras questões controversas. Isso porque muitos enxergam nessa revolução progresso e prosperidade, enquanto outros defendem que a mesma trouxe à tona a disputa por poder, guerras, favorecimentos e mais fome. E pior: nossa espécie, ficou refém de umas poucas espécies vegetais, e não ao contrário como muitos imaginam ou até gostariam. Yuval Noah Harari, autor do best-seller internacional Sapiens – Uma breve história da humanidade, exemplifica bem essas arestas: “(…) A Revolução Agrícola certamente aumentou o total de alimentos à disposição da humanidade, mas os alimentos extras não se traduziram em uma dieta melhor ou em mais lazer. Em vez disso, traduziram-se em explosões populacionais e elites favorecidas (…)”.
Ao analisar as estimativas da FAO, não há dúvidas quanto às inúmeras controvérsias. Há 815 milhões de pessoas passando fome no mundo atualmente, sendo que maioria destas, encontram-se em áreas de conflito. Por outro lado, há outras 1,9 milhão acima do peso. Já a prevalência de desnutrição, gira em torno de 14% da população mundial, da qual 150 milhões são crianças. Há ainda outras 52 milhões com baixo peso. Segundo o diretor-geral da organização, o brasileiro José Graziano da Silva, “O grande problema da fome não é falta da produção de alimentos, já que se produz quantidade suficiente para alimentar a todos, exceto em alguns bolsões, principalmente na África subsaariana e nos pequenos países insulares. A questão passa necessariamente pelo acesso”. Ainda de acordo com a entidade das Nações Unidas, potencializam essa calamidade humanitária de famintos e subnutridos, os conflitos, as crises econômicas e os eventos climáticos extremos. Sobre estes últimos, inclusive, recaem o descaso e a indiferença de muitos líderes, que insistem em atenuá-los ou simplesmente ignorá-los.
Vale a pena lembrar que a questão alimentar não diz respeito apenas ao famintos e aos subnutridos. Há algum tempo, a obesidade é uma questão de saúde pública que custa muito caro à economia mundial e não atinge apenas os que possuem poder aquisitivo para comprar alimentos, mas também as populações mais pobres. Essas, por sua vez, sofrem com a baixa renda e o desconhecimento, o que lhes impõem dietas ricas em açúcares e farináceos, e pobre nos demais nutrientes. Outras variáveis dessa equação dizem respeito aos padrões de consumo, em especial em países desenvolvidos, e ao desperdício de alimentos. O resultado final desse balanço é a fome, desnutrição, subnutrição, obesidade e muito desperdício de alimento. E tudo isso, todos os dias.
Com um balanço como esse e diante da estimava de que o planeta abrigará 10 bilhões de pessoas por volta do ano de 2050, surge então a seguinte questão: como alimentar todos? Segundo previsão da FAO, até essa data, a produção mundial de alimentos terá de crescer, ao menos, 70% para dar conta desse contingente populacional. Ou seja, há mais que incertezas quanto às garantias de segurança alimentar nas próximas décadas. A despeito da proteção social das populações mais vulneráveis, das mudanças nos padrões de consumo, do incentivo à agricultura familiar e da questão ambiental, não há como superar todos esses gargalos sem utilizar-se da ciência. Para citar apenas um exemplo, temos o caso da soja, uma commodity impulsionada pelas inovações do campo científico. Essa oleaginosa não despontaria como um dos principais produtos da balança comercial brasileira se não fosse o desenvolvimento de cultivares mais produtivos, resistentes, com sementes de alta qualidade, por meio de condições nutricionais de cultivo mais adequadas e por meio da fixação biológica de nitrogênio. Vale lembrar que todos estes avanços decorrem de muito investimento público e não de cortes.
Por fim, resta-nos não sermos indiferentes diante da cara da fome, pois esse sentimento não apenas acentua a crise humanitária, como nos torna menos humanos. Vale lembrar que indiferença é também não reconhecer que programas como o Ação da Cidadania (ONG fundada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho) e o programa Fome Zero (por meio do bolsa família, e que tirou mais de 30 milhões de brasileiros dessa condição), segundo a FAO e o Banco Mundial, não apenas saciaram, como ainda saciam a fome de muitos. O Papa Francisco recentemente fez uma alerta aos seus fiéis “Evitemos apresentar a fome como uma doença incurável”. Já outro argentino, Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz e membro da Aliança da FAO pela Segurança Alimentar e Paz, foi ainda mais incisivo “Em um mundo que produz alimentos suficientes para dar de comer a todos os seus habitantes, a fome nada mais é do que um crime”.
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Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá