A cantoria popular da “cartilha científica” produzida no sertão nordestino Coluna do Jucá

quinta-feira, 12 outubro 2017

Thiago Jucá presta uma homenagem ao Dia do Nordestino, comemorado em 8 de outubro

O desenvolvimento científico de um povo sempre esteve atrelado à relação do homem com o meio ambiente. Essa relação de desenvolvimento para o homem do campo tem sido pautada no contato íntimo e na observação diária da natureza, assim como na exploração de subsistência e no uso tradicional de seus recursos. Assim, sem fazer uso de um método científico (do rigor analítico, da redação científica, da revisão por pares e das agências de fomento que são marcas registradas da ciência moderna), o conhecimento tradicional (“cartilha científica”) tem sido construído ao longo dos séculos.

O Sertão nordestino é uma das quatro sub-regiões do Nordeste brasileiro, no qual a vegetação e o clima predominantes são a caatinga (o único bioma exclusivamente brasileiro) e o semiárido, respectivamente. Ele abrange quase todos os estados do nordeste (Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí). Essa região é um belo e rico exemplo de como essa “cartilha científica” tem sido construída ao longo do tempo pelo seu povo, os nordestinos.

Ao falar desse belo povo somos levados a falar do “conhecimento científico popular” dos “Profetas da chuva” que, prestando atenção aos fenômenos da natureza (limpeza dos formigueiros por parte das formigas; o estudo das pedras de sal; o teor de água na garrafa embaixo da fogueira; o aspecto da casa dos cupins; o nível de água das cacimbas entre dezembro e janeiro; o angico botando resina; e a posição da construção da casa do João-de-barro) “ajudam a prever quando choverá”. Esses conhecimentos têm sidos transmitidos, divulgados, popularizados e perpetuados através de prosas, rimas, versos, e poesias tanto na forma de literatura de cordel como através da cantoria popular, ambos, tão típicos da região (um viva especial para o grande poeta popular Patativa do Assaré!).

Veja o caso das letras e melodias de Luiz Gonzaga (um dos maiores expoentes desse povo!) que, em parceria com inúmeros outros compositores, propaga até hoje, a cultura nordestina e o seu respectivo “conhecimento científico popular”. Os mais diversos versos desses compositores revelam o cotidiano das relações do homem com a terra, clima, estação, além da fauna e flora da região. Só para citar alguns exemplos:

Não posso respirar/não posso mais nadar/a terra está morrendo não dá mais pra plantar/se plantar não nasce, se nascer não dá/até pinga da boa é difícil de encontrar/Cadê a flor que estava aqui?/poluição comeu (Xote Ecológico, Luiz Gonzaga) ///// Umbuzeiro veio/Veio amigo quem diria/Que tuas folhas caídas/Tuas galhas ressequidas/Íam me servir um dia (Umbuzeiro A Saudade, Luiz Gonzaga) ///// Ainda hei de ver um dia/A minha terra sem a praga da erosão/Ai! Quem me dera se eu pudesse/Se Deus me desse uma atenção/E ajustasse todo o povo/No mutirão para acabar com a erosão…/Ai, minha gente, que fartura/Tanta riqueza se espalhando pelo chão/É macaxeira, girimum caboclo/Batata- doce, melancia e melão/Feijão de corda se enroscando em tudo/Dá gosto de ver minha plantação/Lá no açude, a água tão limpinha/Espelha o verde e a criação/É tão bonito este meu pé-de-serra/Com a terra livre da erosão (Erosão, Luiz Gonzaga) ///// A água sai de cabrobó/Parnamirim, salgueiro/Até jati/Deixe o rio desaguar doutor/Pra acabar/Com o sofrimento daqui/O são Francisco/Com sua transposição/No meu nordeste/O progresso vai chegar/Se é que o Brasil/Agora está na mão certa Na contramão/O meu sertão não vai ficar/Priorize esse projeto, seu doutor

E deixe o rio desaguar/Esse projeto/Centenário vai vingar/E com certeza

Será nossa redenção/Vamos ter muitos/Hectares de terra, tudo irrigados/É água pra mais de um milhão/O Jaguaribe tá sequinho, seu doutor/Rio piranhas, Apodi e Castanhão (Deixe O Rio Desaguar, Luiz Gonzaga) ///// “Não bote a mão no buraco do tatu/Que é muito perigoso, e é preciso ter cuidado/Lá dentro pode ter uma cascavel, ou surucucu/esperando com o bote armado/Não bote a mão no buraco do tatu/Que é muito perigoso, e é preciso ter cuidado/Lá no meu roçado, no meio do mandiocal/Tem muito buraco de tatu (Buraco de Tatu, Luiz Gonzaga) ///// No Nordeste imenso, quando o sol calcina a terra/Não se vê uma folha verde na baixa ou na serra/Juriti não suspira, inhambú seu canto encerra/Não se vê uma folha verde na baixa ou na serra/Acauã, bem no alto do pau-ferro, canta forte/Como que reclamando sua falta de sorte/Asa branca, sedenta, vai chegando na bebida/Não tem água a lagoa, já está ressequida (Aquarela Nordestina, Luiz Gonzaga) ///// Se avexe não/Que a lagarta rasteja/Até o dia em que cria asas/A natureza não tem pressa/ Segue seu compasso/ Inexoravelmente chega lá (A Natureza Das Coisas, Flávio José) ///// “ O mandacaru secou/o agave e a mancambira/que a folha virou imbira/maniçoba esturricou/aveloz amarelou/lá não tem mais nada verde/gado com fome e com sede/dê um jeito meu senhor/lá secou meu senhor/lá secou meu senhor/Bahia de todos os santos/Pernambuco e Seridó/em muitos e muitos outros cantos/Ceará e Maceió é a seca nordestina/Paraíba masculina/sempre sempre é a pior/e o moxotó é de fazer dó e o moxotó é de fazer dó/seu doutor tá tudo seco/baxio tabuleiro e chá/lá morreu tudo de sede/cururu caçote e rã/lá não tem mais nada verde/nem mesmo o maracanã/só resta o símbolo da seca/a cigarra e acauã/acauã acauã (Seca Nordestina, Flávio José)

A lista de composições, principalmente do Gonzagão, o maior propagador da “cultura científica” do sertão nordestino, revela que a produção dos saberes a respeito da natureza se perpetua para muito além das revistas científicas indexadas com seus “Qualis ABC” ou de trabalhos acadêmicos (monografia, dissertações e teses). O nosso bioma caatinga é o “maior laboratório” do nosso sertão e, para tanto, merece ser preservado, cuidado, protegido e valorizado para que a “cultura científica popular” dessa região nunca se acabe, apenas se adiante e se propague e, conforme enfatizado pelo poeta Flávio José em sua música “Utopia Sertaneja”

“Um dia quando o sertão se preparar pro saber

Da carta do abc e dominar toda ciência

Terá auto-suficiência, será do mundo um celeiro

Profetizou conselheiro a idos tempos atrás

E o nó enfim se desfaz é tempo de redenção”.

Referências Bibliográficas

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Thiago Lustosa Jucá,

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