Em duas partes, o texto da professora e pesquisadora mexicana Dalia Muñoz narra os episódios ocorridos naquele país
Começou no Brasil com a Primavera Feminista de 2015 e 2016, que mobilizou milhares de mulheres contra os retrocessos promovidos pelo Congresso na legislação que protege os direitos das mulheres e contra a misoginia institucional da mídia, do sistema político e da sociedade. Continuou no Chile, que desde 2018 é palco de uma fortíssima onda de mobilizações de mulheres contra o machismo estrutural que permeia todas as esferas e espaços da sociedade e se reflete em uma legislação e em práticas sociais opressoras, e que desde a eclosão da insurreição massiva de meados do ano passado contra o modelo neoliberal de gestão da vida tornou-se o epicentro da luta feminista na América Latina, fazendo história com a manifestação do 8 de março de 2020 que reuniu mais de dois milhões de mulheres em Santiago. Prosseguiu na Argentina com um gigantesco movimento pela legalização do aborto que, em 2019, levou centenas de milhares de mulheres às ruas do país e obrigou o Congresso Nacional a discutir a garantia legal do direito de escolha.
Mesmo em um contexto de ascensão dos fascismos e de escancaramento das violências estruturais, as mulheres da Nossa América – muitas delas, pela primeira vez e sem terem tido contatos anteriores com movimentos feministas – estão se levantando aos poucos contra a matriz patriarcal e colonial das sociedades do continente e, neste início de 2020, mais um país está vivendo um movimento de mulheres de proporções inéditas. No 8 de março, o México viu inúmeras cidades serem inundadas, pela primeira vez em sua história, por uma maré de mulheres de diversas idades, classes e cores – muitas das quais nunca tinham participado de mobilizações sociais – protestando juntas contra a violência machista que, naquele país, assassina em média a dez mulheres por dia, na esmagadora maioria dos casos com total impunidade. E esse país fez história também no dia seguinte, a segunda-feira 9 de março, com uma adesão massiva à Greve Nacional de Mulheres que parou a economia mexicana por um dia, revelando o poder da união das mulheres.
Na coluna desta semana, publicamos um relato sobre essa experiência histórica do 8 e do 9 de março no México, escrito a pedido da coluna Diversidades pela professora e pesquisadora Dalia Berenice Muñoz García, docente do Centro de Estudios Universitarios ARKOS (CeuARKOS) de Puerto Vallarta, no estado de Jalisco, e integrante do Taller Investigación-Acción-Formación Transdisciplinar da mesma instituição. Ativista feminista, Dalia Muñoz é cientista política formada pela Univerdidad Autónoma de Nayarit (UAN) e mestra em Ciências Sociais com orientação em Desenvolvimento Sustentável pela Universidad Autónoma de Nuevo León (UANL). Junto à professora Dalia, a coluna agradece à professora e pesquisadora Ana Cecilia Espinosa Martínez, doutora em Ciências da Educação e diretora do CeuARKOS, por ter articulado com a autora a produção e o envio deste texto.
8M para viver sem medo, 9M para nós mesmas: um relato da onda feminista no México
Por Dalia Muñoz
Tradução do espanhol: Antonino Condorelli
Quando o feminismo conseguiu enxergar-se como uma perspectiva para compreender a configuração da realidade social, percebemos graças às muitas reflexões herdadas de mulheres sábias que nos antecederam, mulheres intelectuais, artistas, indígenas, operárias, donas de casa que “a dominação das mulheres começou quando passaram a ser consideradas e tratadas como propriedade dos homens, o que se articulou com a divisão sexual do trabalho. Fortaleceu-se com o pensamento religioso, que foi construindo a ideia da mulher como complemento do homem, como algo secundário. Nos foi negada a faculdade de sermos seres sencientes, pensantes e existentes. Como consequência, nos foi negada a capacidade de participar do espaço público e, com isso, nos fecharam o acesso às escolas, às assembleias políticas, às atividades físicas e econômicas[1]”. As mulheres feministas, antipatriarcais, anticapitalistas e anticolonialistas chegaram a essas conclusões. O sistema patriarcal pune as mulheres por serem mulheres, e o castigo se intensifica dependendo das condições econômicas, geográficas, étnicas, culturais, religiosas e escolares de cada mulher.
Mas o feminismo ou os múltiplos feminismos não contribuíram apenas para a compreensão teórica da realidade social. Os feminismos também permitiram gerar estratégias de participação política não convencionais, que são colocadas em prática em âmbitos tão diversos quanto os espaços estudantis, laborais e familiares, nos meios de comunicação, em comunidades rurais e indígenas, bem como nas cidades.
O feminismo é uma intervenção política cotidiana. Tenta mudar os relacionamentos diários estruturados pela dominação patriarcal que se naturalizaram, como o fato de nós mulheres dedicarmos mais tempo ao trabalho doméstico não remunerado; como a naturalização de que dediquemos mais tempo a cuidar da família: filhos, filhas, marido, pais e mães, em vários casos doentes; como o fato cotidiano de que, no México, nós mulheres tenhamos salários 40% inferiores aos dos homens, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística e Geografia (2018); ou considerados tão normais quanto a denúncia apresentada pela ONU Mulheres (2018) que aponta que seis em cada dez mulheres no México sofreram violências; ou como de fato de que são cometidos 10 feminicídios por dia no país e 9 mulheres desaparecem todos os dias só na Cidade do México, segundo dados da Secretaria Executiva do Sistema Nacional de Segurança Pública (SESNSP). Não queremos que isso seja normal, porque é violento, agressivo, impositivo, explorador e assassino.
A partir dos feminismos, também compreendemos que a consolidação desse sistema de crenças é reforçada pelo Estado. Essa entidade complexa, onipresente e onipotente que utiliza seus componentes institucionais, militares, legais e culturais não apenas para reproduzir, mas para intensificar a exclusão, a exploração e a dominação do homem sobre a mulher.
Diante desse contexto brutal, nós mulheres tivemos que agir de diferentes maneiras para dizer que não concordamos e que não queremos continuar a viver assim. No México, uma das formas mais recentes de expressar nossa voz, denunciar nossa raiva em face do do medo e exigir que não queremos mais nenhuma mulher desaparecida, nenhuma mulher assassinada, nenhuma mulher agredida foi responder à Convocação para a Paralisação Internacional do 8M[2], que propôs uma greve mundial como “resposta à atual violência social, jurídica, política, moral e verbal que as mulheres contemporâneas em diferentes latitudes sofrem”.
No México, mulheres de mais da metade do país participaram das manifestações, principalmente na Cidade do México e nos estados de México, Oaxaca, Yucatán, Puebla, Durango, Coahuila, Nuevo León, Nayarit, Morelos, Guerrero, Hidalgo, Querétaro, San Luis Potosí, Veracruz, Baja California e Jalisco[3]. Alguns meios[4] divulgaram a cifra de cem mil mulheres só na Cidade do México, que marcharam e se apropriaram do espaço público com músicas, slogans, pôsteres, pinturas e, em casos excepcionais, também bombas de fumaça e molotov[5].
Cada marcha realizada nos diferentes estados do México mostrou a diversidade das mobilizações políticas feministas e dos recursos utilizados, a maioria pacíficos. As cores púrpura, verde e preto foram o signo compartilhado por todas as marchas. A alegre rebeldia se fez presente com slogans como: Yo sí te creo (Eu acredito em você); No estás sola (Você não está sozinha); Ahora que estamos juntas, ahora que sí nos ven. Abajo el patriarcado que se va caer, se va caer. Arriba el feminismo que va vencer, que va vencer (Agora que estamos juntas, agora eles nos veem. Abaixo o patriarcado que vai cair, vai cair. Viva o feminismo que vai vencer, vai vencer); Amiga, hermana, aquí está tu manada (Amiga, irmã, aqui está a tua manada); Ni la iglesia, ni el estado, ni el marido, ni el patrón, mi cuerpo es mío y solo mía es la decisión (Nem a igreja, nem o estado, nem o marido, nem o patrão, meu corpo é meu e só minha é a decisão); entre muitos outros que fizeram alusão ao contexto atual produzido pelas violências de gênero.
Slogans gritados e cantados com as entranhas e a alma, para exigir que essas violências acabem.As famílias de mulheres desaparecidas e vítimas de feminicídio estiveram presentes em muitas marchas. Uma das cidades onde essas famílias estiveram presentes para continuar exigindo justiça foi Puerto Vallarta, no estado de Jalisco. Por razões geográficas, este ano tive que participar da marcha feminista nessa cidade. Por esse motivo, vou compartilhar como vivemos o 8M neste porto.
A marcha feminista do 8M em Puerto Vallarta
Esta marcha teve como ponto de encontro um shopping center localizado em frente a um local conhecido na cidade como la marina. O horário da concentração foi às cinco da tarde. À medida que o contingente crescia com a chegada de estudantes, trabalhadoras, donas de casa, filhas, irmãs, amigas, mães, repórteres e alguns homens, também ia tomando forma. As famílias de mulheres desaparecidas e vítimas de feminicídio em Puerto Vallarta lideraram a marcha, seguidas por mulheres de diferentes condições econômicas, escolaridades, idades, profissões ou ofícios; e terminando com o grupo misto, composto por famílias integradas por homens acompanhados de suas/seus filh@s e por mulheres e homens sós.
A marcha começou e avançou pela avenida principal da cidade, a Francisco Medina Ascencio, chegando até o Parque de las Mujeres. O nome deste parque foi autoproclamado pela Red 8M[6], como um ato de reivindicação do espaço comum e em solidariedade às companheiras a quem a violência patriarcal arrancou a vida. Para aquelas que nos fazem falta e não deixaremos de nomear em qualquer espaço e o tempo todo.
Dessa forma, o Parque de las Mujeres intervindo com varais informativos, cruzes rosa, flores e ojos de dios[7] sediou o ato com o qual terminou a marcha. Foi realizada uma intervenção de pañuelos de plegarias[8], outra de Pañuelos Verdes[9] no monumento que está no parque, além da leitura de pronunciamentos de alguns coletivos que, além de compartilhar como veem a situação da violência contra as mulheres, fizeram um convite para as quase 500 pessoas ali reunidas para participarem da greve nacional do 9M, que em Puerto Vallarta tinha como slogan: Paramos para nos organizar.
A coluna Diversidades é atualizada às segundas-feiras. Leia, opine, compartilhe e curta. Use a hashtag #Diversidades. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br).
Leia a coluna anterior: Sob o sol da Maré: Marielle, mídia negra e a luta antirracista
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom, um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
Antonino Condorelli
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