8M para viver sem medo, 9M para nós mesmas – Parte 2 Diversidades

segunda-feira, 30 março 2020
A Marcha do 8M em Puerto Vallarta, México. Foto: Dalia Muñoz.

Acompanhe a parte final do texto da pesquisadora mexicana Dalia Muñoz sobre as ações feministas que marcaram aquele país

Na segunda parte do texto sobre a experiência histórica do 8 e do 9 de março no México, a professora e pesquisadora Dalia Berenice Muñoz García, docente do Centro de Estudios Universitarios ARKOS (CeuARKOS) de Puerto Vallarta, no estado de Jalisco, e integrante do Taller Investigación-Acción-Formación Transdisciplinar da mesma instituição fala que “os feminismos são uma revolução permanente”. Ativista feminista, Dalia Muñoz é cientista política formada pela Univerdidad Autónoma de Nayarit (UAN) e mestra em Ciências Sociais com orientação em Desenvolvimento Sustentável pela Universidad Autónoma de Nuevo León (UANL). Junto à professora Dalia, a coluna agradece à professora e pesquisadora Ana Cecilia Espinosa Martínez, doutora em Ciências da Educação e diretora do CeuARKOS, por ter articulado com a autora a produção e o envio deste texto.

8M para viver sem medo, 9M para nós mesmas: um relato da onda feminista no México – Parte 2

Por Dalia Muñoz

Tradução do espanhol: Antonino Condorelli

A greve do 9M

O mês de março de 2020 marcou para as mulheres do México um momento de grande mobilização e de organização internacional e nacional. Além de responder positivamente à marcha global do 8M, à qual aderiram mulheres de 28 países[1], incluindo o México, elas também responderam à convocação para a greve nacional do 9M. Convocação que conclamou as mulheres mexicanas a interromperem suas atividades na segunda-feira, 9 de março, em escolas, lugares de trabalho, casas, comércios e ruas. Essa iniciativa foi lançada por Las Brujas del Mar, um coletivo feminista do estado de Veracruz que colocou que, numa segunda-feira, a greve das mulheres seria mais sentida por patrões, fábricas e escritórios do que num domingo[2]. Quando essa convocação começou a se espalhar e popularizar, surgiu a pergunta entre as mulheres: você vai parar no 9M?

Foto: Dalia Muñoz

As primeiras dúvidas que assaltam as mulheres ao responder à pergunta têm a ver com questões estruturais de condicionamento social, pois uma greve é um ato subversivo que desafia a ordem social estabelecida. E, como histórica e culturalmente as mulheres foram ensinadas a praticar obediência, greve ou marcha não são atividades relacionadas à concepção hegemônica do ser mulher. Então, a pergunta “Você vai parar no 9M?” carregava implicitamente várias outras: Você vai se tornar uma mulher subversiva? E se te punirem? Se descontarem um dia do meu salário? Se me colocarem falta na escola? Se minha família ficar chateada?

A todas essas inquietações se somaram as intervenções de atores políticos e religiosos, bem como de instituições comerciais que aproveitaram a conjuntura para expressar suas posições na discussão nacional sobre o 9M. Alguns apoiaram a iniciativa e externaram que não ia haver qualquer tipo de retaliação contra as mulheres que decidissem se juntar à greve nacional. Outros, como o atual presidente da república mexicana, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), questionaram a legitimidade da greve, dizendo que havia infiltrados “conservadores” no movimento feminista. Em uma de suas coletivas de imprensa matinais[3], o presidente tentou minimizar e invisibilizar a greve feminista, dizendo: “Eu não percebi, nem tinha em mente que segunda-feira era o dia 9, o dia da greve”.

O discurso de AMLO ganha relevância porque, ao ser considerado um dos poucos presidentes de esquerda e progressistas, não apenas no México, mas em toda a América Latina, seria esperado não só que respeitasse minimamente, mas que apoiasse as demandas do movimento feminista. Na realidade acontece todo o contrário: nas narrativas que tece em suas coletivas de imprensa matinais, estigmatiza o movimento feminista apresentando-o como suas “opositoras”, alimentando um ambiente de polarização entre os e as mexicanas. Vale lembrar que AMLO iniciou seu governo com uma taxa de aprovação de 80% entre as e os mexicanos, mas tem diminuido para 58% devido ao aprofundamento da insegurança e dos feminicídios[4].

Essa polarização se produz entre aqueles que apoiam com fervor e aqueles que questionam ou que têm uma voz independente da do mandatário. Entre as vozes independentes estão as das mães que exigem justiça pelo assassinato de suas filhas, que buscam a punição dos responsáveis e o fim da violência contra as mulheres; entre as vozes independentes estão também as de milhares de estudantes de muitas universidades públicas e privadas, cursinhos, escolas secundárias e escolas primárias que denunciam assédio, estupro e abuso patriarcal em todo o país; entre as vozes independentes estão as das feministas antipatriarcais, anticapitalistas e anticolonialistas e que, por não encontrarem justiça nas instituições, expõem e exibem sua inutilidade e ineficácia.

Nesse contexto político, observa-se que os grupos que apoiaram a greve do 9M e os que a desacreditaram têm algo em comum: a maioria deles não havia se articulado antes do 8M e do 9M com os movimentos feministas dos diferentes estados e também não haviam apoiado suas demandas mais prementes, como o direito de decidir sobre o próprio corpo (aborto legal) e as exigências de acabar com o desaparecimento de meninas e mulheres, com os femicídios, com os estupros, com o assédio e com a violência no trabalho e política. Em outras palavras, eles não tinham tido presença nem aproximação com os movimentos feministas. Pelo contrário, sua ausência sempre se havia destacado quando necessitávamos deles.Com as condições mencionadas, no contexto nacional foi gerado um tipo de “ruído”, havia tantos elementos políticos, culturais e econômicos que não foi possível entender à primeira vista o que estava acontecendo no país. A entrada de atores políticos e empresariais na discussão do 9M causou desconfiança em algumas feministas radicais.

Por fim, na segunda-feira, 9 de março, muitas mulheres mexicanas aderiram à greve nacional. A mensagem foi clara: não precisamos da sua permissão para transformar a realidade social. Porque nenhuma revolução pede permissão. E o feminismo é uma revolução. Naquele dia, vários lugares no México ficaram sem mulheres em escolas, lugares de trabalho, lojas e ruas.

Os resultados mais visíveis se produziram na economia. O impacto econômico do 9M e seu apelo para não produzir e não consumir foi estimado em 34 bilhões de pesos, mais de 1,6 bilhão de dólares[5]. Apesar disso, os resultados que não podem ser vistos a olho nu são os mais importantes. Estes têm a ver com a tessitura de redes entre mulheres; com o aprendizado de organização política para intervir em espaços públicos; com a consolidação da solidariedade e da sororidade entre companheiras e irmãs; com o acompanhamento de famílias que continuam a exigir justiça por suas mulheres desaparecidas e assassinadas, a quem não podemos deixar de mencionar em quaisquer espaços porque nos fazem muita falta; com o aprendizado de participação no âmbito jurídico e institucional; com a construção de uma maneira diferente de exercer a cidadania e, acima de tudo, com a unidade entre as mulheres como uma frente que declara que si tocan a una, respondemos todas[6] (mexeu com uma, mexeu com todas).

A professora e pesquisadora Dalia Muñoz. Foto: Arquivo pessoal.

À guisa de conclusão

O México está passando por uma transição política institucional que visa superar o regime do Partido Revolucionário Institucional (PRI), caracterizado pela consolidação de uma cultura política corrupta, autoritária, corporativista e nepotista. Para superar esse regime político, o governo de AMLO definiu como prioridade de sua ação a população em situação de pobreza. Para isso, foram criados programas sociais na forma de bolsas para crianças, jovens, idosos e camponeses. Conseguiu-se cortar os salários de altos funcionários que aprofundavam a desigualdade econômica entre as e os mexicanos, estão sendo feitos esforços para democratizar as instituições, houve avanços na discussão de questões como a legalização da maconha, e poderíamos continuar citando ações que apontam para um melhoramento político, econômico e social para a população mexicana.

No entanto, ao lado desse cenário, outro vai se desenvolvendo. O obscuro, o silenciado, o invisível. O que nos persegue desde o mandato de seis anos de Felipe Calderón (2006-2012), quando se declarou guerra aos cartéis de drogas mexicanos e a violência patriarcal e capitalista se fez presente em todo o país. Foi frontal, brutal e cotidiana. Outro sexênio passou. Enrique Peña Nieto chegou à presidência em 2012, mas nada mais aconteceu em seu governo além de reforçar as políticas neoliberais para saquear a riqueza do país. Enquanto isso, a violência patriarcal e capitalista continuava a aumentar. Em 2018, chegamos ao governo da Quarta Transformação liderado por AMLO. A violência patriarcal, capitalista e colonialista não apenas continua a nos assombrar, como se intensifica. Mudou até chegar a ser cada vez mais mortal.

A violência patriarcal, capitalista e colonialista ameaça a vida de meninas, meninos, jovens, mulheres, homens, ecossistemas naturais, nações indígenas, culturas, histórias, sonhos. Estamos diante do aprofundamento e a intensificação da violência contra a vida. Nesse contexto, nós mulheres feministas, antipatriarcais, anticapitalistas, anticolonialistas e não-partidárias entendemos que estar cada vez mais juntas entre mulheres, nos encontrar, conversar e nos organizar para dizer que não queremos continuar vivendo com tanta violência deve ser um caminho para imaginar outros tipos de sociedade, outros tipos de relações. Onde não sejamos discriminadas por sermos mulheres, onde os nossos corpos não sejam sexualizados e reificados e sejamos livres para nos vestirmos como quisermos, para sairmos para onde quisermos, sem sentirmos esse medo permanente de sermos observadas, perseguidas, assediadas. Onde as mulheres não desapareçam e nunca mais aconteça que não se descubra o que aconteceu, por que desapareceu, onde está, quem era; onde as mulheres não sejam assassinadas e os feminicidas não fiquem impunes.

Os feminismos são uma revolução permanente. Para as mulheres assassinadas, para as desaparecidas, porque não queremos nem uma vítima a mais de feminicídio. Para as mulheres que estão por vir. A cada 8M, a onda feminista crescerá. Em cada espaço onde uma mulher luta pela vida, o patriarcado está caindo.

Referências

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Leia a coluna anterior: 8M para viver sem medo, 9M para nós mesmas: um relato da onda feminista no México – Parte 1

“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom, um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.

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