Ironicamente, depois de duas décadas, hoje a Globo investe em reality shows com famosos
Por Ana Karolina Carvalho e Juliana Fernandes Teixeira
No ano de 2001, entrava no ar o primeiro reality show da televisão brasileira: a Casa dos Artistas, exibida pelo SBT até 2004. O formato reunia um grupo de famosos, incluindo atores, músicos e modelos, isolados em uma casa, disputando uma premiação. Para quem olha a formação do Big Brother Brasil 21, hoje, pode se perguntar: onde está a inovação que a Rede Globo tanto anunciou?
Afinal, a temporada começou com 20 participantes, divididos entre Pipoca (anônimos) e Camarote (famosos). No ano passado, a dinâmica havia sido parecida, mas foi anunciada como se o Camarote reunisse apenas influenciadores da internet. Esse ano, ficou mais claro que a ideia é confinar celebridades, sejam de qual ramo forem.
Ironicamente, a Globo passou a ser acusada, pelos mais jovens, de plagiar A Fazenda, versão brasileira do reality The Farm, produzida pela Record desde 2009. Porém, os mais velhos, lembraram justamente da acusação de plágio da própria Globo contra A Casa dos Artistas. Afinal, quando foi lançado o programa do SBT, o BBB ainda não havia entrado no ar (o que só aconteceria em janeiro de 2002), embora a Globo já houvesse comprado o formato da Endemol.
A Globo chegou a entrar na Justiça do Estado de São Paulo e conseguiu impedir a exibição da Casa dos Artistas por dois dias. Mas o SBT ganhou a causa inicialmente e também um recorde histórico: o programa que transmitiu a final do reality no dia 16 de dezembro de 2001 atingiu, no IBOPE, média de 47 pontos e picos de 55, contra 18 pontos da Globo, que exibia a sua clássica revista semanal Fantástico. É verdade que, em 2015, o Superior Tribunal de Justiça considerou A Casa dos Artistas como plágio do BBB e condenou o SBT a pagar uma multa em torno de R$ 18 milhões. Mas o feito histórico ficou mais na memória do brasileiro que a condenação.
Isso tem levado o nosso grupo de pesquisas na Universidade Federal do Piauí (o JOII – Jornalismo, Inovação e Igualdade) a refletir: o que leva um formato televisivo a ser considerado inovador? Até porque, tanto na academia, quanto no mercado, é complicado delimitar e classificar um formato audiovisual. O próprio Fantástico: é jornalismo ou entretenimento? Os reality shows: são entretenimento ou realidade? De todo modo, os formatos ajudam na construção de sentidos, pois facilitam na organização dos recursos expressivos e de linguagens. Os formatos são, portanto, guias para que os usuários saibam o que estão assistindo.
O BBB sempre se apresentou como entretenimento, baseado na “vida real”, com “pessoas reais e anônimas”. Porém, a edição desse ano se apresentou como inovadora. Seria, segundo a Globo, a maior edição de todos os tempos, em todos os sentidos: mais participantes e mais tempo de duração. Quando os nomes dos confinados começaram a ser divulgados, constatou-se que haveria mais celebridades também, com mais fama que a edição anterior. É inegável que isso ocorreu a partir da entrada de nomes como Fiuk, Projota e Karol Conká, para citar alguns exemplos.
Um outro ponto a ser observado foi a estratégia da Rede Globo em formular uma “edição inovadora” baseada na questão da militância social. A presença de artistas influentes que construíram suas carreiras cantando e propagando letras e ideias que denunciavam o preconceito racial e a exclusão social prometia fazer dessa uma edição histórica. Contudo assim que se iniciou o programa a resposta do público foi outra. Em um primeiro momento as pessoas reclamaram do debate social que os participantes tentavam promover a todo custo como por exemplo o extenso discurso da participante Lumena depois de um evento promovido pela Avon na qual os homens se vestiram de mulheres.
“Queremos pessoas fúteis”, “Precisamos nos alienar não quero discussões sociais em um reality show”, foram algumas das reclamações retuitadas milhares de vezes dentro da rede social do Twitter que é a responsável pela grande mobilização do público do reality. O pedido por uma realidade de fato “real” entrou em conflito com a proposta tão inovadora da emissora que parecia ter colocado artistas de renome altamente ensaiados para a “lacração”.
Tanto foi o esforço que as coisas saíram do controle e em menos de uma semana o público consolidava o BBB 21 como a pior edição da história. As pessoas “conscientes” e militantes de causas importantes protagonizaram atos extremamente desumanos contra um participante da casa: Lucas Penteado. A exclusão, o abuso psicológico, e a humilhação feita pela casa com um único participante por conta de um erro ganhou tanta repercussão que famosos e influenciadores começaram a promover um boicote a edição, mobilizando comunidades inteiras do Twitter a marcarem os patrocinadores do programa para pressiona-los a cancelar a edição, ou expulsar a participante Karol Conká.
Apesar da grande repercussão negativa o reality na verdade ganha cada vez mais ibope, uma prova disso foi que o programa atingiu em seu segundo paredão 32 pontos de média, com 38 de pico, um recorde de audiência que até então só tinha sido alcançada na final do BBB 20. É nesse momento que refletimos: reclamamos da maldade humana dando atenção a ela? Vimos pela primeira vez um participante desistir do programa após uma série de abusos que o levaram a exaustão emocional, a comoção causada do lado de fora da casa no entanto só alimentava o jogo e continua a impulsionar mais ainda a audiência.
Os limites do entretenimento são diariamente testados dentro da casa mais vigiada do Brasil, que ainda continua sendo o reality mais assistido da TV aberta, diferente da Fazenda, no BBB o confinamento é ainda mais cruel, já que os participantes não possuem tarefas diárias como os peões da emissora vizinha. Isolados dentro de si mesmos praticam atos e falam coisas absurdas em uma casa vigiada 24 hrs. São julgados pelo público que mobilizam suas eliminações e mesmo revoltados continuam a alimentar cada vez mais o que quer que esteja sendo feito dentro da casa.
Importante ressaltar também que os artistas confinados nessa edição promoveram a maior queda de carreira já vista desde o início do novo formato, só Karol Conká perdeu cerca de 400 mil seguidores e teve shows cancelados em festivais que retiraram sua participação. As redes sociais continuam sendo o maior medidor de popularidade e repercussão de uma celebridade, no caso dos artistas confinados o risco de comprometer a carreira talvez não estivesse nos planos, exatamente pelo fato de serem extremamente queridos pelo público antes de “mostrarem” suas verdadeiras personalidades.
Reconhecemos que a teoria da comunicação já atesta como quase consensual o fato de que os formatos sofrem alterações ao longo do tempo, sendo reflexo das mudanças na própria sociedade. Como apontava Patrick Charaudeau, na obra Discurso das Mídias, os formatos são complexos, dinâmicos, mutáveis e heterogêneos, podendo se reconstruírem em função de tendências, interesses e demandas sociais, tecnológicas e de mercado. Isso permite e até facilita o surgimento de formatos novos e híbridos, ou seja, viabiliza a reestruturação criativa do seu uso, evidenciando alguns aspectos e apagando outros. Em resumo: os formatos, naturalmente, operam no limite entre o conhecido e o inovador.
Nesse caso, a Casa dos Artistas seria plágio do BBB? Ou o BBB hoje estaria se tornando uma cópia da Fazenda? Poderíamos trazer outros programas à baila, nesse sentido: o que difere o The Voice de outros programas clássicos de calouros do SBT e da Record? Mas daí já é outra discussão que merece outro texto para nosso Observatório. O fato é que temos três meses de Big Brother Brasil pela frente e muitas discussões ainda hão de surgir por aqui.
A coluna Observatório de Mídia é atualizada quinzenalmente às quintas-feiras. Leia, opine, compartilhe e curta. Use a hashtag #observatorionossaciencia. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br).
Leia o texto anterior: Andanças virtuais e a necessidade de ver o mundo em tempos de isolamento
JOII – Grupo de pesquisa em Jornalismo, Inovação e Igualdade da Universidade Federal do Piauí
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