Zygmunt Bauman e a desigualdade como moto-perpétuo Artigos

sexta-feira, 27 janeiro 2017

Artigo de José Monserrat Filho sobre o pensador polonês falecido aos 91 anos

“Pois àquele que tem, lhe será dado e lhe será dado em abundância, mas ao que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado.” Mateus 13.12

Falecido em 9 de janeiro, aos 91 anos, o pensador polonês Zygmunt Bauman, professor emérito das Universidades de Varsóvia e de Leeds (Reino Unido), abordou questões do cotidiano contemporâneo das pessoas do mundo inteiro, com visão abrangente, profunda, humanista e, ao mesmo tempo, acessível e comunicativa. Famoso por ter cunhado o conceito de “liquidez” que aplicou aos problemas e costumes da sociedade humana no nosso tempo, deixou análises vigorosas sobre as desigualdades sociais que têm se espalhado pelo planeta em ritmo avassalador.

Seu livro A riqueza de poucos beneficia todos nós?– publicado em inglês em 2013 e em português em 2015 (pela Zahar) – tem, como primeira de suas quatro epígrafes, a citação do Evangelho de São Mateus que considerei apropriado e justo colocar no início deste texto. A frase atesta que o flagelo da desigualdade “não chega a ser novidade” e reflete o espírito do volume, conciso mas contundente, no qual Bauman enfrenta, muitos séculos depois, “um debate apaixonado a partir de processos completamente novos, espetaculares, chocantes e reveladores”.

Logo na introdução, ele lembra: “Na era do iluminismo, durante a vida de Francis Bacon, Descartes ou mesmo Hegel, o padrão de vida em qualquer lugar da Terra nunca era mais que duas vezes superior àquele em vigor na região mais pobre. Hoje, o país mais rico, o Qatar, se vangloria de ter uma renda per capita 428 vezes maior que aquela do país mais pobre, o Zimbábue (a comparação é entre médias).” Nunca se viu tamanha desigualdade em toda a história humana.

Para Bauman, “a obstinada persistência da pobreza no planeta que vive os espasmos de um fundamentalismo do crescimento econômico é bastante para levar as pessoas atentas a fazer uma pausa e refletir sobre as perdas diretas, bem como sobre os efeitos colaterais dessa distribuição da riqueza”. Que, na realidade, é uma “não-distribuição da riqueza”. A seu ver, “o abismo crescente que separa os pobres e sem perspectiva de abastados, otimistas, autoconfiantes e exuberantes – abismo cuja profundidade já excede a capacidade de todos, exceto dos mais fortes e inescrupulosos arrivistas – é razão óbvia para ficarmos gravemente preocupados”.

A propósito, ele concorda com quem adverte que “a principal vítima da desigualdade será a democracia, já que a parafernália cada vez mais escassa, rara e inacessível da sobrevivência e da vida aceitável se torna objeto de rivalidades cruelmente sangrentas (e talvez de guerras) entre os bem providos e os necessitados e abandonados” (1). Para Bauman, essa assertiva desmonta “uma das justificativas morais básicas da economia livre de mercado, isto é, que a busca do lucro individual também fornece o melhor mecanismo para a busca do bem comum” (grifo do autor).

Ele está convencido de que “a riqueza acumulada no topo da sociedade, ostensivamente, não obteve qualquer ‘efeito de gotejamento’; nem tornou qualquer um de nós, em qualquer medida, mais rico; nem nos deixou mais seguros e otimistas quanto a nosso futuro e o de nossos filhos; nem tampouco, segundo qualquer parâmetro, mais felizes.”

Pelo contrário. “Pessoas que são ricas estão ficando mais ricas apenas porque são ricas.Pessoas que são pobres estão ficando mais pobres porque já são pobres”, observa Bauman e completa: “Hoje, a desigualdade continua a aprofundar-se pela ação de sua própria lógica e de seu momentum. Ela não carece de nenhum auxílio ou estímulo a partir de fora – nenhum incentivo, pressão ou choque. A desigualdade social parece agora estar mais perto de se transformar no primeiro moto-perpétuo da história – o qual os seres humanos, depois de inumeráveis tentativas fracassadas, afinal conseguiram inventar e pôr em movimento.”

Bauman acompanha o aumento da remuneração de um diretor executivo das maiores empresas americanas em comparação com o salário médio de um trabalhador de fábrica. Em 1960, o diretor executivo ganhava doze vezes mais que o trabalhador. Em 1974, 35 vezes mais. Em 1980, 42 vezes mais. Em 1990, 84 vezes mais. Em meados de 1990, 135 vezes mais. E, em 2000, já era 531 vezes mais. Não parece um moto-perpétuo em contínua aceleração?

Notável é a crítica de Bauman a um trecho do discurso de Margaret Thatcher (1925-2013) feito durante visita aos EUA, em 1970, já como alta funcionária do governo inglês, do qual  seria a primeira-ministra em 1979-90. Thatcher – que não tardaria a promover a desregulamentação do setor financeiro, a flexibilização do mercado de trabalho e a privatização de empresas estatais – disse então: “Uma das razões por que valorizamos indivíduos não é porque sejam todos iguais, mas porque são todos diferentes… Eu diria: permitamos que nossos filhos cresçam, alguns mais altos que outros, se tiverem neles a capacidade de fazê-lo. Pois devemos construir uma sociedade na qual cada cidadão possa desenvolver plenamente seu potencial, tanto para seu próprio benefício quanto para o da comunidade como um todo”.

Escreve Bauman a respeito: “Observe que a premissa crucial que leva a afirmação de Thatcher a parecer quase evidente em si mesma – a suposição de que a ‘comunidade como um todo’ seria adequadamente servida por todo cidadão dedicado a seu ‘próprio benefício’ – não foi explicada com clareza, sendo aqui aceita como ponto pacífico. Como observa Dorling (2), de maneira sarcástica, Thatcher pretende que ‘a capacidade potencial deva ser tratada como a altura’ (isto é, algo que está além do poder de interferência humana); assim como presume, mais uma vez sem provas, que diferentes indivíduos tenham por natureza capacidades diversificadas, em vez de possuir distintas capacidades a serem desenvolvidas, porque cabem a cada um diferentes condições sociais.”

“Em outras palavras” – esclarece Bauman –, “Thatcher toma como ponto pacífico, como algo evidente, que nossas diferentes capacidades, assim como nossas diferentes alturas, são determinadas por nascimento, ‘normalizando’ desse modo a implicação de que pouco ou quase nada há na capacidade humana para mudar esse veredicto do destino. Essa foi uma das razões pelas quais, no fim do século passado, ‘tornou-se aceita a estranha noção de que, ao agir egoisticamente, de algum modo, as pessoas beneficiam as outras’” (3).

No capítulo dedicado a Algumas grandes mentiras, Bauman nos oferece breve lista de “falsas crenças”, “talvez aquelas que, mais que todas as demais, têm responsabilidade pelo flagelo da desigualdade e seu crescimento em aparência incontrolável e metastático”:

“1. O crescimento econômico é a única maneira de lidar com os desafios e de algum modo resolver todos e quaisquer problemas que a coabitação humana necessariamente gere.

2. O aumento permanente do consumo, ou a rotatividade acelerada de novos objetos de consumo, talvez seja a única ou, pelo menos, a principal e mais efetiva maneira de satisfazer a busca humana pela felicidade.

3. A desigualdade entre os homens é natural; assim, ajustar as oportunidades de vida humana à sua inevitabilidade beneficia todos nós, enquanto adulterar seus preceitos prejudica todos.

4. A rivalidade (com seus dois lados, a eminência do notável e a exclusão/degradação do desprezível) é, simultaneamente, condição necessária e suficiente para a justiça social, assim como para a reprodução da ordem social.”

O final é inesperado e de uma franqueza sem ranhuras, com corajosa e dramática dose de otimismo: “Permita-me acrescentar que atribuir a si mesmo responsabilidade pelo mundo é um ato ostensivamente irracional. A decisão de assumi-la, complementada pela responsabilidade por essa decisão e suas consequências, contudo, é a última chance de salvar a lógica do mundo da cegueira que ele sofre e das suas consequências homicidas e suicidas.”

Referências

José Monserrat Filho é vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: <jose.monserrat.filho@gmail.com>.

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