No atual estágio da democracia a recuperação do espaço público ocorrerá através de plataformas digitais?
(Por Homero Costa)
Este artigo trata brevemente da leitura de um dos livros do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han: “No Enxame: perspectivas do digital”, publicado em 2013, na Alemanha e em 2018, no Brasil (Editora Vozes).
O livro “No Enxame” é uma leitura crítica comunicação digital e a necessidade de uma reflexão a respeito de suas consequências. Para ele, “embriagamo-nos hoje em dia da mídia digital, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual” (p. 13).
A concepção de enxame, que dá título ao livro, é uma metáfora sobre comportamento em grupo nos ambientes digitais, ou seja, uma análise das interações entre as pessoas mediadas pelos ambientes digitais: essencialmente é a de que não há a formação de um espaço público que possibilita à participação, mas o contrário, faz com que as pessoas atuarem como um enxame.
Ele estabelece as diferenças entre a massa e o enxame. A noção de massa surgiu no século XIX, com os efeitos da segunda Revolução Industrial e suas consequências e ele cita os estudos pioneiros de Gustave Le Bon (Psicologia das multidões. Publicado em 1895 teve várias edições no Brasil, a mais recente é de 2019, pela editora Martins Fontes). A massa aparece para Le Bom, diz ele, “como um fenômeno da nova relação de soberania. O direito divino das massas substituiria ‘o direito divino do rei’ e que a insurgência das massas leva tanto à crise da soberania como ao declínio da cultura. As massas seriam, portanto, “destruidoras da cultura” (p.26).
No entanto, as massas têm a sua individualidade reduzida. Atua como um aglomerado de “ninguéns”, sem perfil próprio ou identificação. E para Han, encontramo-nos hoje novamente em uma crise, em uma transição crítica, pela qual uma outra revolução, a saber, a revolução digital, parece ser responsável e a nova massa é o enxame digital (p.26) e assim nas sociedades atuais as pessoas se comportam mais como enxames, singularizados e sem participação política, do que como as massas analisadas por Le Bon (saliente-se que ele foi um dos teóricos do chamado racismo científico, afirmando, entre outras coisas, que havia raças superiores e que um povo constituído por mestiços é sempre ingovernável). Quanto aos que compõem o enxame, ainda que possam agir anonimamente como faz nas redes sociais, por exemplo, tem um perfil, que busca nutrir o tempo inteiro, clamando por atenção.
No início do livro (Enxame), Han trata de um tema cuja compreensão é de fundamental importância para entender suas reflexões sobre a comunicação digital, que é a noção de respeito. No capítulo Sem respeito, ele afirma que o respeito “pressupõe um olhar distanciado, um pathos da distância. Ele é o alicerce da esfera pública. Hoje, ele dá lugar a um ver sem distância, ou seja, “domina uma falta total de distância, na qual a intimidade é exposta publicamente e o privado se torna púbico” (p.12) e nesse sentido “A comunicação digital fornece essa exposição pornográfica da intimidade e da esfera privada (p.13). É uma sociedade sem respeito, sem o pathos da distância. Para ele, o respeito está ligado aos nomes. Anonimidade e respeito se excluem mutuamente. A comunicação anônima que é fornecida pela mídia digital desconstrói enormemente o respeito (p.14). É o que ocorre hoje com distâncias cada vez mais encurtadas, sem a distinção entre o público e o privado.
Em sua análise um aspecto central na comunicação digital é a informação (que é diferente do Saber). Ele se refere à existência de uma enxurrada de informações, que leva ao cansaço e até mesmo distúrbios psíquicos como a Síndrome da Fadiga de Informação, causada pelo excesso de informação. Trata-se de uma profusão constante, não filtradas e que fundamentalmente, não mais se distingue o que é essencial e o que não é. Com o volume incessante de informações, não há tempo necessário para processá-las.
Assim, a comunicação digital destrói a distância de modo generalizado e a falta de distância leva ao que é privado e público a se misturarem. É o fim da privacidade, ou seja, as redes sociais se tornam espaços de exposição do privado no qual nenhuma esfera pública é possível. É o triunfo da cultura da indiscrição e da falta de respeito.
Sem a presença do Outro, afirma que “a comunicação digital degenera em um intercâmbio de informações: as relações são substituídas pelas conexões, e assim só se comunica com o igual: a comunicação digital é somente visual, perdemos todos os sentidos; vivemos em uma fase em que a comunicação está debilitada como nunca: a comunicação global e dos likes só tolera os mais iguais” (Byung-Chul Han: hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização. Carlos Geli, jornal El País, 7 de fevereiro de 2018).
Ele se refere ao que chama de fantasmas digitais, aludindo ao fato de que a comunicação digital cria distância do real e em vez de aproximar, de ampliar as possibilidades de comunicação, gera indivíduos isolados e que assim sendo, não podem agir politicamente como cidadãos, mas como consumidores passivos.
Outro aspecto relevante é que com o desenvolvimento tecnológico, a vigilância e o controle passam a ser partes inerentes da comunicação digital e mais: a ditadura da transparência, o colapso da privacidade (que acompanha o uso universal da internet) resulta ou contribui para o conformismo. Como ele diz, a comunicação se torna cada vez mais um corpo sem rosto “pobre de olhar”, ou seja, a mídia digital em vez de aproximar, afasta uns dos outros, são dispositivos que possibilitam ao mesmo tempo ficar perto das pessoas – em rede – mas fisicamente longe do contato.
Que consequências uma sociedade digital de vigilância traz para a democracia? E mais do que isso, para a cultura e até mesmo a linguagem. Ameaça à democracia, porque como afirma Han, essas novas tecnologias têm acesso ao inconsciente coletivo, ao comportamento social e assim controlando os dados de todos, pode desenvolver traços totalitários, tornando também possível prever modelos de comportamentos coletivos.
O controle não se dá mais através de proibições e sim da vigilância total e do acúmulo de dados que permite aos que detém os dados (governos, empresas etc.) conhecerem melhor as pessoas do que elas mesmas. É o que ele chama de nova técnica de controle de Psicopolítica.
A Psicopolítica, para ele se configura como uma técnica de dominação que, em vez de antigos métodos opressores, recorre a um poder que seduz, que faz com que as pessoas se submetam por elas mesmas às forças da dominação, e pior, sem ter consciência disso. A sua eficácia é fazer com que os indivíduos pensem que são livres, quando na realidade não o são.
Como ele explica no capítulo intitulado O Big Brother amável, a Psicopolítica utiliza e se apropria dos dados que as pessoas entregam voluntariamente e assim permitem que seus comportamentos sejam previsíveis. Por que amável? Porque “em vez de confissões extraídas por meio da tortura, tem lugar uma exposição voluntária. O smartphone substitui a câmara de tortura. O Big Brother tem uma aparência amável. A eficácia da sua vigilância reside na sua amabililidade” (Psicopolítica, 2015, p.48).
Em um dos capítulos ele apresenta e discute o conceito de multidão formulado por Antonio Negri e Michael Hart (eles publicaram um livro com esse título e em 2005 foi publicado no Brasil pela editora Record: Multidão – Guerra e democracia na era do Império). No entanto, diverge dos autores. Para ele, não se trata mais de multidão, mas de pessoas isoladas, solitárias, que é o que caracteriza a constituição social atual e na qual a solidariedade desaparece (Negri e Hart, ao analisarem o trabalho sob o domínio do capital, aludem à possibilidade de resistência da multidão, o que não pode ocorrer num contexto de pessoas isoladas, quando existem apenas consumidores passivos e a identidade privada é dissolvida).
Para ele, essa é uma das consequências da comunicação digital: tornar os indivíduos singularizados, isolados, que não desenvolvem nenhum “nós”, que se expõem continuamente, competindo por atenção. Como ele diz: “o homo digital não é ninguém, mas um alguém anônimo que não se reúne e assim não desenvolve nenhuma energia política porque o que faz é efêmero, volátil e instável e por isso mesmo (…) não está em condições de colocar em questão a relação de poder dominante (…). O habitante digital da rede não se reúne. Falta a ele a interioridade da reunião que produziria um Nós. Eles são, antes de tudo, isolados para si, singularizados, que apenas se sentam diante da tela”. Portanto, não há solidariedade e sim uma erosão do comunitário.
A era digital é, também, a era do desempenho, que transforma todo o tempo em tempo de trabalho. Não há ócio, e o “desaceleramento” apenas diminui a velocidade do tempo de trabalho, em vez de transformá-lo em outro tempo. A ideia é a de que os aparatos digitais “produzem uma nova coação, uma nova exploração”.
Quando trata da comunicação digital, e mais especificamente do controle digital, um aspecto fundamental diz respeito ao Big Data, ou seja, o conjunto gigantesco de dados no qual tudo é mensurável e quantificável, e que possibilita atuar como forma de controle muito mais eficaz porque dispõem de dados sobre todos.
Han se refere ao que chamou de registro total da vida “Hoje, cada clicar de tecla e cada palavra que introduzimos no motor de busca ficam registrados. A totalidade da nossa vida é objeto de reprodução na rede digital. O nosso hábito digital proporciona uma representação extremamente exata da nossa pessoa, da nossa alma – uma representação talvez mais precisa ou completa do que a imagem que fazemos de nós próprios” (Psicopolítica, Relógio D’Água Editores, 2015, p.71).
Assim, se trata de uma análise da comunicação digital como um lugar ocupado por um agrupamento de pessoas sem poder de ação coletiva, um aglomerado centrado em questões individuais, isoladas, sem voz. Para ele, em um num ambiente onde tudo é visível, tudo é transparente, tudo é de conhecimento público, o privado é retirado de cena.
E um grande desafio para a democracia é saber se é possível que com a perda de representatividade dos partidos e outras instituições, ou seja, ausência da mediação institucional, a ampliação da desconfiança nos governos etc., poderá haver saídas para a recuperação do espaço público – onde a cidadania deve ser exercida – através de plataformas digitais. Quem vai ocupar o vazio da credibilidade pública? É possível que as redes sociais, por exemplo, criem novos cenários de cidadania? Ou ao contrário, como parece estar ocorrendo, grandes corporações e governos usem tecnologias cada vez mais sofisticadas para não apenas localizar e monitorar as pessoas, mas isolá-las, torná-las apenas consumidoras passivas, sem capacidade de resistência ou mobilização, legitimando assim o sistema de vigilância, de manipulação, pondo em risco à própria democracia?
Leia outros artigos mesmo autor
Da democracia manipulada à democracia digital?
Quais são as consequências da descrença nos partidos políticos para a democracia?
Sobre a onda de desdemocratizção no mundo
Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Homero de Oliveira Costa
Deixe um comentário