Tudo pronto para a guerra no espaço? Artigos

quarta-feira, 16 novembro 2016

“Ainda não se tem clareza e segurança sobre se e como um conflito bélico espacial, uma vez deflagrado, pode ser contido”, afirma José Monserrat aludindo à eleição de Donald Trump, em artigo para o Nossa Ciência

“Lembrem-se de sua humanidade e esqueçam o resto.” Manifesto Russell-Einstein, de 9 de julho de 1955. (1)

A inesperada ascenção de Donald Trump à Casa Branca assustou o mundo. A grande mídia chamou o fenômeno de nova era da incerteza, como se hoje ou ontem tivéssemos a certeza de alguma coisa. Qual é, afinal, o verdadeiro Trump? O das violentas maluquices ditas e repetidas durante a campanha eleitoral ou o das promessas de paz e amor, feitas no discuso da vitória?

Noam Chomsky, famoso linguista e cientista político americano, acertou na mosca: “Surpreendeu-me a irrelevância dos fatos. Já não importa se o dito é certo ou falso. A verdade é irrelevante. Trump é um mestre nisso. Foi espantoso ver como não importava quão loucas eram as coisas que ele dizia.” (2) O conteúdo não interessa. Entra por um ouvido e sai pelo outro.

Mas, ao festejar o triunfo, Trump parece ter sido sincero, embora contraditório. Certamente faltou-lhe o hábito da franqueza e sobrou-lhe o vício do jogo trapaceiro das palavras. Afirmou ele: “Quero dizer à comunidade mundial que sempre colocaremos os interesses dos Estados Unidos acima de todos os demais, mas lidaremos de forma justa com todo mundo, todos os povos e todas as nações. Buscaremos terreno comum, não hostilidade, parceria, não conflito.” (3)

Cabe perguntar: Pode um país – e, em particular, o país mais rico e poderoso da Terra – colocar sempre seus interesses acima de todos os demais e, simultaneamente, tratar de modo justo os outros povos e países? Ou ainda, pode um país – ao outorgar a seus próprios interesses uma posição privilegiada no concerto das nações e, portanto, ao partir do pressuposto de que tais interesses são, em princípio, inegociáveis, não podendo ser objeto de qualquer concessão, ainda que pequena – dedicar-se, efetivamente e de boa fé, à busca, na relação com os outros países, de um terreno comum de cooperação, de não hostilidade, de real parceria e não conflito?

A inflexibilidade e desrespeito às demais nações não condizem com os princípios da soberania, da igualdade de direitos e da autodeterminação de todos os países, pedra angular do Direito Internacional, calcado na Carta das Nações Unidas, em pleno vigor, ratificada por 193 países, entre os quais os próprios EUA. (4) Imagine o que Trump pensa do Direito e da Justiça.

A Carta, no Artigo 55 do Capítulo IX, sobre Cooperação Internacional Econômica e Social, reza: “Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e c) o respeito universal e efetivo à raça, sexo, língua ou religião.”

Um dos propósitos das Nações Unidas (Artigo 1) é “desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal”, inclusive no espaço exterior. E o Artigo 2 determina que todos os países devem “evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força” contra qualquer nação, ou qualquer ato “incompatível com os Propósitos das Nações Unidas”. Trump, convém lembrar, nunca falou de paz mundial em toda a campanha. Republicano, mantém estreitas relações com o complexo industrial militar, que fatura altíssimo criando novos armamentos. Mais de 200 almirantes e generais apoiaram sua candidatura, como ele mesmo disse. (5) Dai a relevância da questão que examinamos a seguir.

Se não impedirmos o uso da força no espaço, as órbitas do nosso planeta logo logo chegarão a uma situação crítica, adverte o Índice de Segurança Espacial – ISE 2016 (Space Security Index – SSI 2016), recém-lançado nos EUA, já em sua 13ª edição. Essa publicação nos dá a primeira e única avaliação anual, abrangente e integrada da segurança espacial no século XXI.

O objetivo do ISE é facilitar o diálogo sobre os desafios da segurança espacial e suas potenciais respostas, fornecendo os fatos e dados necessários para lastrear e orientar um debate de inestimável importância. O relatório avalia os desenvolvimentos e atividades do ano anterior – no caso, 2015 – com base em quatro indicadores dos níveis de segurança no espaço: sustentabilidade ambiental; acesso e uso do espaço; tecnologias para a segurança espacial; e governança espacial. O objetivo é captar as mais relevantes tendências e mudanças. (6)

A presente edição impressiona pelas revelações sobre “a crescente ênfase conferida ao espaço como teatro de guerra”, ou seja, como campo de batalha. O comentário é de Jéssica West, gerente do Projeto Ploughshares, think tank canadense de pesquisas sobre a paz e a segurança. (7)

O Projeto tem excelentes parceiros: Fundação Simons, Colúmbia Britânica, Canadá; Instituto de Direito Aéreo e Espacial da Universidade McGill, Montreal, Canadá; Instituto de Política Espacial da Universidade George Washington, EUA; Escola de Direito e Unidade de Pesquisa sobre Direito Militar e Ética, Austrália; e Faculdade de Direito da Universidade Xi’an Jiaotong, China.

As principais conclusões do ISE 2016 são, segundo o Space Daily, de 8 de novembro (8):

1. As maiores potências seguem desenvolvendo e demonstrando capacidade de construir armas anti-satélite;

2. Crescem as tensões militares no espaço, em consequência de controvérsias, como as que se verificam hoje no Mar do Sul da China e na Europa Oriental (neste item, claro, haverá que distinguir entre litígios provocados e litígios reais);

3. As estratégias militares em alguns países passam por mudanças, inclusive visando ao uso mais agressivo do espaço como teatro de guerra;

4. São raros os mecanismos destinados a restringir o uso da força no espaço;

5. A comunidade internacional não concordou até hoje com as diretrizes mais básicas sobre as atividades espaciais.

O orçamento de estabilidade espacial foi substituído por outro que apoia programas geradores de instabilidade e conflito. Essa informação é a mais significativa dos relatórios do SSI feitos até hoje, ressalta Theresa Hitchens, pesquisadora do Centro de Estudos Internacionais e de Segurança da Universidade de Maryland, EUA, e antiga consultora do Projeto Ploughshares.

Jana Robinson, do Instituto de Estudos de Segurança de Praga, por sua vez, sustenta que persistem as ameaças tradicionais decorrentes do ambiente espacial – como o aumento de detritos nocivos, a concorrência por radiofrequências, interferência de sinal e tempo espacial. Hoje, enfrenta-se “crescente variedade de ameaças multidimensionais”,  de atores tanto estatais como  não-estatais, projetadas para negar ou comprometer outros benefícios do espaço.

Refletindo sobre o potencial de confrontos militares na Terra espalhados pelo espaço, Robinson se pergunta se a comunidade global está preparada para gerenciar uma situação ativa anti-espaço e a provável negação de serviços espaciais. E responde: “É quase certo que não”. (9)

As ações para um país negar a outro o uso do espaço teriam, de imediato, efeitos em cascata. Produziriam mais lixo espacial. Mas o pior poderia vir depois: a eliminação de satélites de enorme utilidade para a Terra. Em 2007 – em claro recado aos EUA, dentro da lógica do “veja bem, nós também temos” –, a China realizou uma demonstração anti-satélite: destruiu um satélite próprio já desativado, criando imensa nuvem de detritos, que atingiu órbitas da Terra muito usadas. (10)

Outro fato alarmante: ainda não se tem clareza e segurança sobre se e como um conflito bélico espacial, uma vez deflagrado, pode ser contido. Nos jogos de guerra, ataques a satélites são capazes de gerar confrontos graves e imprevisíveis, alerta Laura Grego, da Union of Concerned Scientists (União de Cientistas Preocupados, fundada em 1969), dos EUA. (11)

Ocorre que o espaço é indispensável não só para os militares e para quem opera estratégias de ataque e defesa, muito embora – no espaço, em especial – já se saiba perfeitamente que a melhor defesa é o ataque e que o ataque é a melhor defesa…

Não por acaso, em 2013, a Asembleia Geral das Nações Unidas aprovou resolução proposta por um grupo de nações, inclusive o Brasil, concitando todos os países a não serem os primeiros a instalarem armas no espaço, e proibindo a instalação em órbitas da Terra de novos tipos de armas de destruição em massa. (12)

O espaço é hoje essencial ao dia-a-dia na Terra, para a indústria, o desenvolvimento humano, a segurança de todos os países, o monitoramento e a proteção do meio ambiente, a prevenção, o enfrentamento e a mitigação de desastres naturais e provocados, bem como o acompanhamento, o estudo e a resolução dos problemas da economia mundial. Tudo isso tornou-se dependente dos dados e benefícios espaciais, como bem indica o ISE 2016.

O ISE 2016 nos dá também acesso a importantes cifras das atividades espaciais do mundo, em 2015. Havia, então, 1.419 satélites ativos; 70 programas espaciais civis; 87 tentativas de lançamento de satélites por sete Estados; 190 espaçonaves individuais lançadas; 56 Estados proprietários de satélites; mais de 2.000 vidas salvas graças ao programa Cospas-Sarsat (13); os novos investimentos em projetos espaciais envolveram algo em torno de US $ 1,5 bilhão; e a indústria de satélites faturou 208 bilhões de dólares norte-americanos. (14)

Daí a conclusão para lá de óbvia do próprio relatório: “Manter um ambiente operacional seguro e estável no espaço é imperioso para todos.”

Resta saber o que o Presidente Trump pensa e fará a respeito, a fim de recuperar a grandeza de seu país, como ele não cansa de dizer.

Referências 

José Monserrat Filho é vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB)

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