A aproximação recente do governo com o Congresso Nacional sinaliza o retorno ao conhecido presidencialismo de coalizão, mas cujos desdobramentos são imprevisíveis
(Homero Costa)
A eleição presidencial de outubro de 2018 desfez o padrão de disputa bipartidária pela presidência entre PT e PSDB que ocorria desde 1994, com dominância do PT em quatro eleições desde 2002 (2006 2010 e 2014). Houve também uma ruptura político-ideológica, com a polarização extremada – que continua depois das eleições – e levou a vitória de Jair Bolsonaro.
Uma das promessas de campanha do governo eleito era a recusa em governar de acordo com o modelo institucional de até então, construído na base do “toma lá, dá cá”, considerado como espúrio, com suas inevitáveis práticas de clientelismo e corrupção.
O problema é como governar sem articulação com o congresso. O que se constata é que há algo de profundamente errado na forma como o Executivo vem conduzindo sua relação com o Congresso. Tem sido muito diferente do que caracterizou os governos anteriores, pelo menos desde 1985, com o fim do regime militar e o início dos governos civis, constituídos com o que Sérgio Abranches qualificou, em artigo de referência obrigatória sobre o tema como presidencialismo de coalizão (Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. vol. 31, n. 1, 1988, pp. 5 a 34) mostrando, entre outros aspectos que, desde então, as coalizões foram fundamentais para garantir a governabilidade. E o motivo é simples: nos sucessivos governos – e como acontece com o atual – o partido do presidente não teve nas eleições a maioria nas duas Casas do Legislativo e, portanto para garantir a governabilidade, é necessário construir maioria. Qualquer alteração substancial, como por exemplo, aprovar uma emenda à Constituição, requer o apoio de pelo menos 60% do parlamento e não se faz isso com minoria.
Um aspecto importante em relação ao parlamento brasileiro é que desde a chamada transição democrática, ele é um dos mais fragmentados do mundo. Em 2018 foram eleitos representantes de 30 partidos para o Congresso Nacional (1994 eram 21 partidos; em 1998, 20; em 2002, 19; em 2006, 21; em 2010, 22 e em 2014, 28).
A opção inicial do governo foi a de não formar uma ampla coalizão com base no que chamou do “toma lá dá cá”, apelando para sua base de apoio fora do parlamento, através das redes sociais, para pressionar o congresso. O problema dessa opção é que, ao não querer negociar, incentiva um protagonismo retaliatório do Parlamento. Como diz Sérgio Abranches: “Em confronto com instituições e práticas que garantiram a governabilidade na redemocratização, o presidente segue arriscado caminho limítrofe ao autoritarismo”.
Para ele, o presidente escolheu uma presidência de confrontação desde a campanha eleitoral. No entanto, ao recusar “o enquadramento institucional do presidencialismo de coalizão”, teve sucessivas derrotas no parlamento justamente num “período em que, normalmente, o presidente tem mais força de atração e convencimento”, que são os seis meses iniciais. Mas em vez de conciliação e composição de maioria, houve “uma ruidosa e desajuizada escalada de hostilidades entre o Planalto e o Congresso”
A Constituição de 1988 possibilita grandes poderes ao presidente, como a iniciativa legislativa preferencial, a possibilidade de determinar a tramitação em urgência de seus projetos, a exclusividade de iniciativa em aspectos relevantes, como o orçamento, legislar por decretos e Medidas Provisórias, o poder de veto etc., ou seja, um expressivo poder de agenda.
No entanto, mesmo com esse poder, ao optar pelo confronto com o parlamento, tem consequências e neste governo foi expresso nas derrotas em votações no Congresso como o cancelamento dos decretos sobre posse e porte de armas e a devolução pelo presidente do Senado de uma Medida Provisória pela qual se pretendia restabelecer a transferência da FUNAI e da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura (a medida já havia sido rejeitada pelo Congresso em maio de 2019. O argumento da presidência do Senado neste caso foi a de que há uma lei que proíbe a reedição de Medida Provisória sobre matéria rejeitada pelo Congresso na mesma sessão legislativa).
Outra derrota foi à aprovação na Câmara dos Deputados, no dia 5 de junho de 2019, da PEC do Orçamento Impositivo para emendas de bancada (a execução obrigatória dessas emendas seguirá as mesmas regras das emendas individuais dos parlamentares, que já são impositivas). Foram 378 votos a 4 no segundo turno. Isso significa a ampliação da faixa impositiva das liberações de recursos para o parlamento, em retaliação à negativa do governo de negociar.
E há ainda outras propostas no Congresso, como uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que Altera o art. 62 da Constituição Federal “para dispor sobre o rito legislativo das Medidas Provisórias”. O objetivo é limitar o seu número em uma sessão legislativa e sua vigência, além de “vedar que elas versem sobre direito do trabalho, ou que tratem sobre temas distintos, proíbe “jabutis” e finalmente revoga o regime de urgência”, ou seja, mudanças nas regras nos prazos de exame das Medidas Provisórias que limitariam ainda mais a prerrogativa presidencial.
Compor maioria no Congresso não é tarefa fácil. Exige negociações e habilidade política e, conseguindo ainda tem o risco de ficar refém do parlamento, como ocorreu com a presidência de Michel Temer. Para manter uma coalizão, é preciso ceder, ou seja, há demandas dos parlamentares que é preciso levar em conta, sendo necessário que contemple os interesses dos partidos e seus representantes, ou seja, o presidente tem que ter não apenas a disposição como a capacidade de formar uma coalizão majoritária e consistente, de construir uma agenda, respeitando as diferenças e pluralidade de interesses e caso consiga fazer isso, tem de necessariamente compartilhar com o congresso “parte dos bônus decorrentes desse poder” como diz Abranches.
Para ele, ao analisar os dilemas do presidencialismo de coalizão hoje, há um quadro de complicações que “se completa com um presidente de mentalidade autoritária, arroubos populista, politicamente fraco, que usa os poderes presidenciais com imperícia e se rebela contra as decisões do Legislativo que lhe são contrárias”.
É fato, como ele afirma que o presidente tem conseguido formar maiorias eventuais em algumas decisões econômicas, mas que tem (se) perdido na sua pauta preferencial, de natureza comportamental e ideológica “Ele se dedica com entusiasmo apenas à pequena política, aos temas miúdos, contidos em si mesmos. Foi o que praticou a vida toda como parlamentar. Nunca esteve no centro dos grandes debates constitucionais e institucionais, da macropolítica do desenvolvimento e da construção do futuro”. E o problema principal é que ele “não parece disposto a mudar”.
No entanto, matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo do dia 1 julho de 2019 “Contra mote de campanha, Bolsonaro mantém troca de favores com Congresso”. Assinada por Ranier Bragon, afirma que se “o presidente foi eleito impulsionado pela onda antissistema e com a promessa de acabar com o chamado “toma lá dá cá”, o meio de obtenção de governabilidade adotado até então, os primeiros seis meses de gestão mostram que, apesar de algumas mudanças, o modelo continua sendo praticado. O governo abre o cofre em busca do apoio que necessita”.
E o apoio que necessita hoje, sua principal meta, é a aprovação da reforma da previdência e nesse sentido “Em pelo menos um ponto, de forma até mais enfática, a oferta concretizada na semana passada do pagamento imediato de R$ 10 milhões em emendas extras para cada deputado federal, em troca de apoio à reforma (…). O presidente da República obtém sustentação no Congresso não necessariamente com base em suas propostas para o país, mas pela negociação de emendas parlamentares e de cargos federais”.
Segundo a matéria, cada um dos 594 deputados e senadores puderam apresentar R$ 15,4 milhões em emendas ao Orçamento federal de 2019. “Inicialmente, a oferta foi de R$ 10 milhões extras por ano, em negociação feita por Onyx na casa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em abril. A maioria dos partidos, porém, considerou que o Planalto não cumpriria a palavra nos anos seguintes.
E continua “Com isso, a gestão Bolsonaro dobrou a proposta, oferecendo um extra de R$ 10 milhões por semestre, não mais por ano. Ainda assim, a desconfiança continuou. Diante do impasse, o Planalto chegou à oferta da semana passada, de direcionar R$ 10 milhões imediatamente e mais R$ 10 milhões no momento da votação no plenário. Levando em consideração apenas os 308 votos necessários para aprovação da reforma na Câmara, seriam mais R$ 3 bilhões do Orçamento”.
Outro exemplo citado na matéria que expressa um recuo do governo quanto às suas promessas de não negociar com base no “toma lá dá cá” foi quanto à criação do chamado “banco de talentos”, que é uma “planilha em que os parlamentares listariam os apadrinhados que gostariam de indicar para cargos públicos”. No entanto, “a medida ainda não saiu do papel” e outra foi à aceitação de “recriar os ministérios das Cidades e da Integração Nacional, que seriam loteados por indicados pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, mas que “por desconfiança mútua, porém, a negociação azedou e foi descartada”.
O fato é que, mesmo com esse processo de negociação, a relação do presidente com o Congresso continua precária. Politicamente fraco, minoritário, não pode persistir no confronto com o Congresso. As iniciativas de se compor com base em negociações é um passo importante para o governo e que pode permitir a aprovação de projetos e medidas relevantes, para isso é necessário constituir uma base de apoio parlamentar consistente, visando garantir a governabilidade.
E no caso de continuar o confronto, isso pode gerar uma paralisia decisória e afetar o desempenho do governo, ou seja, gerar instabilidade, assim como queda de popularidade da presidência e, como se sabe por experiências anteriores, à proporção que aumentar a rejeição do governo, maiores serão os problemas com o Congresso Nacional.
Assim, um presidencialismo de confrontação tem o potencial de ampliar a crise. Como diz Abranches “Ao voltar-se contra as regras do jogo, provoca inquietação, radicaliza a polarização e gera o perigo de instabilidade política e social (…) Trata-se de uma situação premonitória de crises de governabilidade. A paralisia decisória encontra um quadro social e econômico desalentador. O país está com a economia parada, o desemprego, altíssimo. A renda real é insatisfatória para a maioria. A sensação de empobrecimento e a falta de perspectiva se generalizam e assim tem mais chance de resvalar para a depressão do que para um reaquecimento suficiente para recobrar dinamismo sustentado e gerar mais conforto econômico para a população. Um governo que frustra as expectativas e uma economia que desalenta a maioria são ingredientes perigosos em qualquer lugar” e que “é a partir da compreensão dos fatores de risco presentes no ambiente que podemos desenvolver práticas preventivas capazes de imunizar a democracia brasileira, preservar suas virtudes e corrigir suas falhas”.
Como não houve uma substituição de um modelo político para outro, embora o confronto governo x parlamento esteja presente, a aproximação recente com o Congresso Nacional sinaliza o retorno ao velho e conhecido presidencialismo de coalizão, mas cujos desdobramentos face à conjuntura social, política e econômica do país, são imprevisíveis.
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O presidencialismo de coalizão e as eleições de 2018
Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Homero de Oliveira Costa