Pode o justiçamento ser útil à sociedade em algumas situações?
(Por Homero Costa)
Num artigo publicado no dia 2 de dezembro de 2019, Felipe Demartini afirma que a chamada “cultura de cancelamento” foi eleita como o termo do ano pelo Dicionário australiano (inglês) Macquarie “um dos responsáveis por selecionar anualmente as palavras e expressões que mais moldaram o comportamento humano”.
O que se tem chamado de Cultura do Cancelamento é uma forma de punir pessoas que apresentam comportamentos considerados racistas, homofóbicos ou controversos. Nas redes sociais como o Facebook, Instagram e Twitter, o ato de cancelar pode ser compreendido como uma tomada de posição diante de condutas, atitudes ou palavras que se julgam censurável e os alvos principais são pessoas famosas ou influenciadores digitais que são, por motivos distintos, “cancelados” para determinadas pessoas ou grupos, porque fez ou disse algo errado ou um deslize e comportamento tido como inadequado. Não apenas no presente, como também no passado. Nesse caso, mesmo que a pessoa já tenha mudado de opinião, se desculpado, reconhecido o erro etc., só o fato de existir um registro na internet (e sua memória eterna) pode e muitas vezes são usados contra ela no presente.
Ross Douthat no artigo 10 Thesis About Cancel Culture (10 teses sobre cultura do cancelamento) publicado no The New York Times no dia 14 de julho de 2020 afirma que a internet mudou a forma como cancelamos e estendeu o alcance do cancelamento. “Você pode ser cancelado pelo que disse em uma multidão de completos estranhos, se um deles enviar o vídeo, o por uma piada que sair errada, se você apareceu nas redes sociais ou fez por muito tempo atrás a internet se lembra (…) e você não precisa ser famoso para ser envergonhado publicamente e marcado permanentemente: tudo que você precisa é ter um dia particularmente ruim, e as consequências podem durar tanto quanto o Google existir”.
O “cancelamento” é um ataque à reputação, unilateral, generalizante, que não aceita erros e contradições, portanto, sem a possibilidade do diálogo. Entre outras consequências, além de possíveis danos psicológicos a quem é excluído (como depressão, por exemplo) e se sentem injustiçados, pode levar a prejuízos financeiros, como perda de emprego, de patrocínios etc. Esse tipo de boicote envolve, entre outras ações, o incentivo ao não consumo de seus produtos (shows, filmes, livros, etc.) e pressões para que marcas vinculadas a eles rompam seus contratos.
Isso se tornou possível, e se amplia, com o alcance das redes e a internet, que se transforma numa espécie de justiceiro, no qual o julgamento depende apenas de quem cancela, sem o direito de defesa de quem é cancelado.
Como isso se dá? Quando alguém conhecido é exposto, acusado de algum escândalo, milhares de internautas se unem para destruir tudo o que se relaciona ao acusado. Às vezes não apenas em relação a quem se acusa, mas também amigos, familiares, etc. Agem como júri, juízes e carrascos. O justiçamento é imediato.
É fato que a cultura do cancelamento tem aspectos positivos. Há comportamentos que não podem e nem devem ser aceitos, como as diversas formas de intolerância: racismo, xenofobia, homofobia etc., mas também pode ocorrer por motivos banais.
Como exemplo positivo tem sido sempre citado o movimento Me Too, criado nos Estados Unidos em 2017, que tornou público inúmeros casos de abuso sexual e estupro dentro de Hollywood, revelando o que não se sabia sobre artistas e diretores, no qual as vítimas, que sofriam caladas por medo, ganharam forças para expor seus agressores. O caso teve ampla repercussão e graves consequências aos acusados. E talvez tenha a sido a primeira grande ação global contra agressores famosos.
Um caso que teve grande repercussão foi o de Joey Cuellar conhecido no mundo do E-Sports como Mr. Wizard. Ele foi um dos criadores e organizadores da EVO Championship, o maior evento do mundo de jogos desta categoria, e cuja edição de 2020 estava programada quando pouco antes do seu início, surgiram na internet denúncias com acusações de casos de pedofilia nos anos 1990. Ele se retratou, pediu perdão, salientou que não tinha relação com a EVO, mas não adiantou: muitos jogadores cancelaram suas inscrições e patrocinadores anunciaram a retirada de apoio, o evento foi cancelado e ele foi expulso do conselho da EVO.
Também tem sido citado o caso da autora da série de livros Harry Potter, J. K. Rowling Ela foi acusada de transfobia (preconceito e ódio contra pessoas trans) em função de declarações sobre o que consideraria ou não “ser mulher”. Além de desapontar muitos fãs, que a cancelaram, atores de seus filmes também repudiaram suas afirmativas, assim como escritores da mesma editora que informaram que não publicariam mais livros por ela.
No Brasil, entre inúmeros exemplos, podemos citar o caso do grupo chamado de Xbox Mil Grau que compartilhavam postagens e comentários racistas e misóginos em sua página na internet e depois de muitos posts, houve protestos, hashtags etc., que culminou com sua exclusão do Youtube e Twitter e devidamente cancelado.
Outro caso de grande repercussão foi da influencer Gabriela Pugliesi, uma blogueira fitness com mais de quatro milhões de seguidores no Instagram, que em plena pandemia – no dia 25 de abril – promoveu em sua casa uma festa, todos sem máscaras, e ainda divulgou (postou vídeo no Instagram gritando “foda-se a vidaaaaa”). Houve uma imediata revolta dos internautas e o caso repercutiu tão negativamente, que ela não apenas se desculpou publicamente (“To super arrependida. Me desculpem. Que sirva de aprendizado pra mim”), mas não evitou a perda de milhares de seguidores (calcula-se em torno de 150 mil), nem de patrocinadores.
Há também casos de condenações retroativas como a que ocorreu com o cantor e compositor Raul Seixas que foi “cancelado” depois que uma biografia publicada 30 anos após sua morte informa que ele teria delatado Paulo Coelho aos militares durante a Ditadura Militar. Depois, passados quase um ano da publicação do livro, no dia 29 de maio de 2020, Cristina Serra e Rogério Marques publicaram um artigo no jornal Folha de S. Paulo revelando documentos mostrando que tudo não passou de um mal-entendido (“Documentos indicam que Raul Seixas não entregou Paulo Coelho à ditadura”).
Muitos artistas e famosos foram cancelados, por motivos distintos, como Anitta, Ludmila ou Biel, mas um que teve grande repercussão foi a do médico Drauzio Varela que foi cancelado depois que, ao entrevistar uma pessoa trans num presídio em Guarulhos, que havia sido presa por estuprar e assassinar uma criança (que ele disse depois que não sabia) deu-lhe um abraço. Foi o suficiente para uma avalanche de críticas e o seu imediato cancelamento.
Mas também houve quem o defendesse, como a médica mineira Julia Rocha que publicou no seu blog no dia 9 de março de 2020 e reproduzido na blogosfera do UOL no mesmo dia um artigo intitulado “Por que a internet massacra Drauzio e aplaude Bruno?” se referindo ao fato de que a entrevista era parte de uma matéria sobre as vivências de mulheres trans em presídios masculinos. E que ele “conhecedor das mazelas do sistema carcerário brasileiro por ter dedicado anos da sua vida profissional a cuidar de pessoas encarceradas, oferece a esta mulher um abraço” e que depois “especulou-se que a detenta havia estuprado, torturado e matado uma criança” e que ela “compartilhava sinceramente a dor da família”, mas lembrou de que “há dez anos um homem e seus amigos mataram, esquartejaram e deram aos cachorros o corpo de uma mulher que inclusive era mãe de seu filho” e que este homem havia anunciado a sua volta ao futebol. E ela diz: que sintomático, não? Para este ex-atleta comprovadamente feminicida devotamos admiração e muitos pedidos de selfeis e pergunta: seria nossa transfobia maior do que nossa capacidade de se compadecer com a mãe que perde a filha assassinada?”.
Como disseram João Batista Jr e Marcelo Marthe num artigo publicado na revista Veja no dia 24 de julho de 2020 “Às vezes, o público reclama, xinga e deleta em nome de causas legítimas”, mas salientam que “o que dificulta a percepção negativa sobre o cancelamento é um paradoxo intrínseco a essa manifestações. Seu método – a demolição das reputações em um frenesi massivo, sem direito de defesa – merece repúdio” e que “Em muitas ocasiões, pessoas e empresas são atacadas de forma leviana e até com fake news”.
Sobre a ligeireza de julgamento e “linchamento virtual” pode ser exemplificado com o ocorreu nos Estados Unidos. No dia 3 de junho de 2020, um homem chamado Emmanuel Caffery ao voltar para casa depois de sair do trabalho, dirigindo uma caminhonete da empresa, estava com as janelas do carro abertas e, segundo ele, fez um sinal de OK com as mãos para fora, sem qualquer intenção de agredir ninguém, mas foi visto (e fotografado) por um motorista de outro veículo, que interpretou o gesto como de um símbolo usado por movimentos supremacistas brancos. Tornado público pelo Twitter de quem o fotografou, houve uma grande repercussão negativa, sendo interpretada também como uma crítica aos protestos pela morte de George Floyd e passaram a exigir sua demissão, o que ocorreu cinco dias depois.
A questão é: se o caso não tenha sido como divulgado e interpretado (hipótese), como reparar os danos? Ou seja, se o que foi dito e divulgado sobre os cancelados forem mentiras, difamações e calúnias? E se revelarem a mesma intolerância que criticam?
Creio que é justamente em função da forma como isso tem sido feito, que tem gerado preocupações. No dia 7/07/2020, por exemplo, foi publicada na revista Harper’s uma carta sobre o que foi chamado por eles de clima de ‘inquisição moderna’ “que veio à tona com a chamada cultura do cancelamento”. Intitulada “Uma carta sobre Justiça e Debate Aberto”, foi assinada por 153 artistas e intelectuais, entre eles Noam Chomsky, Salman Rushdie, Gloria Steinem, Margaret Atwood, Martin Amis, Yascha Mounk, George Packer, John Banville, J.K. Rowling, Malcolm Gladwell, Francis Fukuyama, Michael Ignatieff e Mark Lilla.
E afirmam que “a inclusão democrática que buscamos só pode ser alcançada se nos manifestarmos contra o clima de intolerância que se instalou por todos os lados”.
Defendem a liberdade de expressão e dizem que “o livre intercâmbio de ideias, força vital que alimenta uma sociedade liberal, está sendo mais restrito a cada dia que passa” e que “as forças do iliberalismo vêm ganhando espaço em todo o mundo e contam com um aliado poderoso em Donald Trump, que representa uma ameaça real à democracia”.
Faz também o que pode ser interpretado como uma crítica ao chamado “ativismo progressista” dos Estados Unidos quando afirmam que ”já nos acostumamos a esperar isso por parte da direita radical, mas a atitude censuradora também está se disseminando mais amplamente em nossa cultura: uma intolerância visões opostas, uma propensão a humilhar as pessoas publicamente e submetê-las ao ostracismo, a tendência a dissolver questões políticas complexas em uma certeza moral ofuscante”.
Para eles “ainda mais perturbador é o fato de, em um esforço desesperado para controlar os danos, lideres institucionais andarem impondo castigos apressados e desproporcionais em lugar de reformas bem pensadas que empobrece o debate público e tendem a enfraquecer as normas de tolerância às diferenças em favor da conformidade ideológica”.
Há uma postura de defesa de que se deve preservar o direito de discordar, e não alimentar excessos que venham a silenciar dissidências, que são legítimas e parte do debate público e que “o melhor modo de derrotar más ideias é pela exposição das ideias, a discussão e persuasão, não por tentativa de simplesmente desejar que não existissem” e que como escritores, necessitam de uma cultura que “deixe espaço para experimentação, risco e até erros” e preservar a “possibilidade de divergências de boa fé sem consequências profissionais graves”.
E é justamente contra esse clima, essa “atmosfera sufocante” que a Carta se refere. Mas também não ficou sem resposta. Três dias depois foi publicada outra intitulada “Uma carta mais específica sobre Justiça e debate aberta”, “um esforço de grupo lançado por jornalistas não brancos com contribuições da comunidade jornalística, acadêmica e editorial mais ampla”, com críticas à primeira, afirmando entre outras coisas que “na realidade pessoas negras, pardas, e LGBTQ+ – especialmente pessoas negras e trans – hoje podem criticar elites publicamente e cobrá-las socialmente” e que “parece ser essa a maior preocupação da carta” e ainda que são elitistas :“suas palavras refletem uma resistência a abrir mão do elitismo que ainda permeia o setor da mídia, uma relutância em desmontar um sistema que mantém pessoas como eles de um lado de dentro e o restante de nós do lado de fora” (As duas cartas, com textos aqui citados, foram publicadas no jornal Folha de S. Paulo no dia 17 de julho de 2020, com tradução de Clara Allain).
Isso mostra a relevância da discussão sobre o tema, inclusive da disputa política em torno da “cultura do cancelamento”. Embora muitos defendam que tem sido um meio eficaz de combater pessoas privilegiadas, expondo-as publicamente com diversas acusações (racismo, pedofilia, homofobia etc.) o fato é que, pode-se cair na mesma lógica e práticas que se pretende criticar, ou seja, revelar intolerância com dissidências e adversários e assim à possibilidade de cometer (irreparáveis) injustiças.
Não se trata (e nem se pode nem se deve) “cancelar” a cultura do cancelamento, mas de ampliar o debate e encontrar soluções para não ocorrer justamente o contrário do que se justifica com o argumento de se buscar por Justiça, se transformando num tribunal virtual sem direito de defesa.
O que fazer se ainda não há regras claras sobre como proceder em casos de “linchamentos virtuais” e cancelamentos que poderiam ser considerados injustos? Há procedimentos jurídicos possíveis, mas o tribunal virtual é implacável. Se há casos justificáveis por atos e atitudes de muitos cancelados, quando atinge pessoas injustamente, mesmo que não concordemos ou gostemos delas, devemos defendê-las inclusive porque também podemos ser vítimas.
A cultura de cancelamento foi eleita como termo do ano em 2019
J K Rowling transfobia entenda polemica
Raul Seixas, não diga que a canção está perdida, de Jotabê Medeiros, Editora Todavia, 2019
Mais que cancelar Drauzio querem justificar o próprio ódio
Nossa Ciência firmou parceria com a Saiba Mais – Agência de reportagem e jornalismo independente do Rio Grande do Norte. Saiba Mais.
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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Homero de Oliveira Costa
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