O vírus da insensatez reflete a crise de governabilidade no Brasil
(Homero Costa)
No dia 25 de março de 2020, um dia após o pronunciamento do presidente da República em cadeia de rádio e TV, ele voltou a minimizar os riscos da pandemia do coronavírus, criticando a mídia, prefeitos e governadores em relação às decisões sobre o isolamento social. Entre outras coisas afirmou que “Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento do comércio e o confinamento em massa”. No dia seguinte, a Associação Nacional de Saúde Coletiva (ABRASCO), divulgou uma nota “Bolsonaro, inimigo da saúde do povo” na qual condenou o discurso do presidente que “contrariava as principais medidas propostas pelos órgãos de vigilância sanitária e do próprio Ministério da Saúde para lidar com a pandemia da Covid-19”. E não apenas isso, mas indo também em direção contrária as recomendações da Organização Mundial da Saúde e a todas as medidas de emergência adotadas em outros países.
Segundo a nota, tratou-se de um “discurso da morte”, além de “intolerável e irresponsável”. Denuncia também os efeitos nocivos das posições do presidente sobre a grave situação epidemiológica no país e que “seu pronunciamento perverso pode resultar em mais sofrimento e mortes na já tão sofrida população brasileira, particularmente entre os segmentos vulnerabilizados”.
O “discurso da morte” se enquadra naquilo que o filósofo camaronês Achille Mbembe, chama de necropolítica, cuja uma de suas principais características é o desprezo com a vida humana. Ela está presente em políticas de perseguição de minorias e populações vulneráveis, de cortes de recursos para a saúde, pesquisas, educação etc. e que ocorre não apenas no Brasil como em outros países com líderes populistas e autoritários e uma das consequências de suas políticas, em defesa dos interesses de suas respectivas classes dominantes, é a diminuição ou cortes de investimentos em políticas públicas que possam beneficiar os mais pobres e vulneráveis.
Ainda sobre o “discurso de morte”, no artigo A vida pública de Bolsonaro é demarcada por ideia da morte, publicado no dia 12 de maio de 2019 no jornal Folha de S. Paulo, Jânio de Freitas, ao se referir à campanha presidencial de 2018 diz que é “impossível esquecer um candidato cujo simbolismo era a pose de mocinho ou de bandido com a mímica de pistoleiro. Por escolha sua, de prazer aberto no rosto, sem distinguir lugares e ocasiões. Nas palavras, de variação muito limitada, sempre a difusão das armas letais, a validade da morte alheia a pretexto de defesa, a promessa prioritária de armar os civis. Programa para saúde, educação, retomada do crescimento, emprego, nada”.
Para Janio de Freitas, a vida pública de Bolsonaro é demarcada por uma ideia persistente, a morte: “Alheia. Provocada. Não importa de quem. Iniciante na carreira militar, sua estreia no noticiário se deu pela maneira como pensou em elevar os vencimentos dos tenentes. Não com um manifesto, greve, um movimento de solidariedade civil. Sua atitude foi ameaçar de explosão o abastecimento de água do Rio e de explodir quartéis, caso não saísse o aumento”.
Desde então, o que mudou? Para ele, nada, apenas continuou. No dia 29 de março de 2020, no artigo A nova cara do caos (jornal Folha de S. Paulo) afirma que “A prioridade à economia sobre a vida está na natureza sinistra de Bolsonaro”, se referindo ainda a alguém que “tem como seu herói o chefe de crimes coronel Ultra”, além de “iniciativas amalucadas” e a existência de um estado caótico geral e regressismo social e legal.
No caso específico da pandemia do coronavírus não apenas a Abrasco, mas outras entidades como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Comissão Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns, Associação Brasileira de Ciências (ABC), Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) divulgaram uma nota conjunta “Em defesa da Vida”, com posições contrárias às do presidente. Ou seja, sugerindo que a população fique em casa “respeitando as recomendações da ciência, dos profissionais da saúde e da experiência internacional”. Não por acaso, as críticas da imprensa internacional também foram expressivas por ir na contramão de tudo que as autoridades de outros países tem defendido e implementado.
Os posicionamentos do presidente da República antecedem o pronunciamento do dia 24 de março e nisso ele tem sido coerente ao negar, desde o início da pandemia, o real perigo para a saúde humana. Em Miami (EUA), onde esteve entre 7 a 10 de março de 2020, deu várias declarações, entre outras que “A questão do coronavírus também, no meu entender, está superdimensionado, o poder destruidor desse vírus, então talvez esteja sendo potencializado até por questão econômica (…)” e também que “Muito do que tem ali é muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propaga (…) Alguns da imprensa conseguiram fazer de uma crise a queda do preço do petróleo”.
Como se percebe, desde o início da crise mundial do coronavírus, tem dado declarações em que busca minimizar os impactos da pandemia, tratando como exageradas algumas medidas que estão sendo tomadas tanto no exterior, como por governadores e prefeitos no Brasil. E mesmo considerando o aumento de casos no país, continua mantendo uma postura cética em relação ao vírus.
Essa postura cética, contrariando a ciência, o conhecimento acadêmico e médico, assim como as recomendações de virologistas, infectologistas e a Organização Mundial da Saúde, contribui para que arautos da insensatez, como terraplanistas, grupos antivacinas e teorias conspiratórias prosperem.
Que lógica, que estratégia pode estar por trás de tais comportamentos?
No inicio da crise nos Estados Unidos o presidente Donald Trump, uma referência e exemplo para o presidente do Brasil, afirmou em seu twitter que a vida não deveria parar por causa da nova doença e, tal como aqui, culpou a mídia pelo alarmismo. No entanto, com o crescimento dos casos e mortes nos Estados Unidos, mudou o discurso afirmando agora estar “totalmente preparado para usar todo o poder do governo federal para lidar com o desafio do coronavírus”, tomando medidas como a no dia 11 de março, suspendendo todos os voos da Europa para o país (de passageiros e cargas) e agora determina uma quarentena até o final de abril, rejeitando a ideia de que pode flexibilizar as medidas de isolamento social antes do prazo em determinados lugares do país.
Enquanto isso, o presidente do Brasil continua a ironizar o potencial da doença ao dizer que, por seu histórico de atleta, teria apenas uma “gripezinha” ou “resfriadinho” caso fosse infectado. Ainda classificou de histeria os cuidados atuais recomendados por governadores e prefeitos, culpando-os, assim como o alarmismo da imprensa pela paralisação do país. Estimulou carreatas de seus apoiadores para a abertura do comércio, o retorno à “normalidade”, incluindo a volta das crianças às escolas, permanecendo em casa apenas o que foram chamados de grupos de riscos (idosos, doentes crônicos etc.) defendendo o que ficou conhecido como “isolamento vertical”.
Mas há, a meu juízo, uma questão relevante neste momento, que é uma crise de governabilidade. O comportamento errático do presidente aumenta o seu isolamento político. Errático e contraditório porque anuncia uma ajuda de 88 bilhões de reais aos estados e municípios e pouco depois fez o discurso na contramão dos que os governadores têm feito, como medidas para o isolamento horizontal. Depois, em uma teleconferência com governadores do Sudeste, manteve o mesmo tom de confronto ao bater boca com o governador de São Paulo, João Doria, chamando-o de oportunista por ter se aliado a ele em 2018, e de querer usar a crise como palanque para as eleições presidenciais de 2022.
Governabilidade tem como um dos seus pressupostos capacidade de ação de que um governante dispõe para garantir o cumprimento de determinados programas e metas. Uma crise é exatamente o oposto, a sua incapacidade, como no atual cenário, evidenciando a limitada capacidade de ação do governo. Nesse sentido, uma situação de ingovernabilidade poderá se desdobrar em uma desobediência generalizada da sociedade civil, em face da perda de comando do governo. Crise que se expressa, entre outros fatores, na dificuldade (ou a opção de governar) sem o apoio e articulação no Congresso Nacional e da construção de uma base de apoio consistente e que, como parte desse processo, pode levar a interferência do Poder Judiciário em questões de ordem política, de competência de outros poderes.
Há também fatores de ordem econômica, que o governo não consegue resolver com eficiência, como diminuir o desemprego, as desigualdades sociais etc. O presidencialismo apesar de concentrar o poder no presidente, conforme o dispositivo da Constituição de 1988, não garante a governabilidade em situações de crise. A corrosão nos índices de aprovação no governo, como tem ocorrido, ou seja, a dissolução do voto de confiança da opinião pública no presidente, associado à persistência da crise e a incompetência para resolução das sucessivas crises, a do coronavírus é apenas a mais recente, mas com grande potencial de aguçar os conflitos políticos e sociais e transformar as insatisfações em hostilidades abertas.
Nesse caso, o presidente pode até prosseguir exercendo as prerrogativas institucionais, como entre outros, a decisão sobre o uso de recursos do Estado, mas sem atenuar a crise e apostando no confronto e não na união, as turbulências políticas devem prosseguir até uma crise de legitimidade da autoridade presidencial, expressa não apenas em desgastes no Congresso Nacional, mas que pode levar a mobilização da sociedade civil, com protestos que podem ir além de seguidos panelaços, e contribuir para a desestabilização do governo. A crise do coronavírus vai conseguir fazer isso?
Lideranças dos partidos de oposição procuram fazer sua parte. Em nota conjunta, divulgada no dia 30 de março de 2020, os presidentes do PSB, PT, PC do B, PDT, PCB, Psol, ex-candidatos à presidência da República, Fernando Haddad, Ciro Gomes e Guilherme Boulos, além do governador do Maranhão, Flávio Dino, ex-candidatas a vice-presidente, Manuela Dávila e Sônia Guajajara e dos ex-governadores Tarso Genro (RS) e Roberto Requião (PR), defendem a necessidade de unir todas as forças democráticas, formando uma grande aliança nacional. Para isso tornou-se necessário apresentar um conjunto de ações, um Plano de Emergência com diversas medidas como, entre outras, a implementação da Renda Básica para desempregados e trabalhadores informais, suspensão de tarifas de serviços básicos para os mais pobres enquanto dure a crise etc., mas o aspecto mais relevante é que, neste momento, o presidente da República já deu suficientes demonstrações de que não tem condições de seguir governando o país e de enfrentar a grave crise que atravessa o país. Segundo a nota, o presidente “comete crimes, frauda informações, mente e incentiva o caos, aproveitando-se do desespero da população mais vulnerável” e é mais do que um problema político: tornou-se um problema de saúde pública e nesse sentido “precisa ser urgentemente contido e responder pelos crimes que está cometendo contra nosso povo”.
Há ainda como aspecto relevante, seu isolamento internacional. O jornal Estado de S. Paulo, em editorial no dia 31 de março de 2020 diz que “Bolsonaro, graças a seu comportamento irresponsável, começa a conquistar um lugar jamais ocupado por um presidente brasileiro – o de vilão internacional. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, idolatrado por Bolsonaro, persistiu em sua costumeira arrogância diante do avanço dramático da epidemia, rendendo-se à necessidade de prorrogar o isolamento social, mesmo ante o colossal custo econômico dessa medida”.
Tão perigoso quanto o coronavírus é o vírus da insensatez que, associados a uma crise de governabilidade, pode levar o país a uma situação dramática, com um governo rejeitado pela maioria da população, Congresso Nacional e pela imprensa, com consequências imprevisíveis.
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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Homero de Oliveira Costa
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