Artigo discute atuação das Forças Armadas nos vários períodos da história brasileira com ampla revisão de literatura sobre o tema
(Por Homero Costa)
A relação dos militares com a política no Brasil tem uma longa história. Há muitos e importantes estudos e pesquisas que se expressam em publicações de artigos, ensaios, livros, trabalhos acadêmicos, como dissertações e teses, em que analisam a constituição das Forças Armadas, sua trajetória, intervenções, características políticas, profissionais etc.
Há muitos livros que contribuem para ampliar e aprofundar a reflexão sobre o papel dos militares na história política brasileira. Em breve e resumido artigo, destacaria um dos mais recentes, Militares e política no Brasil, que reúne artigos de 15 pesquisadores acadêmicos e de três oficiais da reserva do Exército e da Aeronáutica. No prefácio, Daniel Aarão Reis Filho, reafirma a importância dos militares na História do Brasil e diz que “Na conjuntura que vivemos nos dias atuais, voltam as Forças Armadas a planar, como sombras, sobre as instituições políticas. Conclamadas abertamente a intervir por vários agentes sociais, exprimindo-se de modo ameaçador, irregular e indisciplinado pela voz de generais da reserva e da ativa, trata-se de saber se a sociedade brasileira estará ou não sujeita a novas intervenções ‘salvadoras’ dos que se acostumaram a se identificar como ‘tutores’ da República”.
Os artigos, entre outros aspectos, fazem uma reconstituição da participação dos militares desde a sua constituição, até o seu papel na atualidade e como destacam os organizadores, o conjunto de artigos “vem para instrumentalizar novas pesquisas e informar os leitores interessados em uma apreensão mais múltipla e polifônica das dimensões entre os integrantes das Forças Armadas como atores políticos e sociais e as instituições militares, como aparelhos políticos de hegemonia, nos contextos das lutas de classes e projetos de nação que permeiam a história brasileira contemporânea”.
E entre muitos aspectos relevantes, mostra como as intervenções militares na política brasileira tem um longo percurso. Começou no Império, como mostra John Schulz no livro O Exército na política: origens da intervenção militar: 1850-1894 e continuou na história republicana, desde o início: a proclamação da República foi um golpe militar (os dois primeiros presidentes (Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto) eram militares e no decorrer da República, foram muitos eventos com participação dos militares na política, com motins e sublevações, como a participação de oficiais do Exército nas chamadas revoltas tenentistas de 1922 e 1924, a chamada Revolução de 1930, que na realidade foi um golpe, resultado, entre outros aspectos de conflitos intra-oligárquico, fortalecido por militares dissidentes.
Getúlio Vargas, que havia perdido as eleições para Júlio Prestes, se torna presidente provisório e depois eleito indiretamente em 1934 (como estabelecia a Constituição) e sempre com apoio militar governa até 29 de outubro de 1945, quando é deposto por eles. Nesse ínterim houve a chamada Revolução Constitucionalista de São Paulo (derrotada por Vargas) em 1932, as revoltas militares de 1935, o golpe de novembro de 1937, com a instauração da ditadura do Estado Novo em novembro de 1937, a tentativa de golpe integralista em 1938, até a deposição de Vargas em 1945, todos com decisiva participação militar (para mais detalhes sobre as rebeliões militares na década de 1930, consultar Vanda Costa Com rancor e com afeto: rebeliões militares na década de 30 , In: Ciências Sociais hoje, 1985 e José Murilo de Carvalho Forças Armadas e política, 1930-45,in: Forças Armadas e política no Brasil).
A importância dos militares se expressa na eleição presidencial de dezembro de 1945 na qual os dois principais concorrentes eram militares, o marechal Eurico Gaspar Dutra, do PSD – que havia comandado a repressão ao movimento de 1935 e da tentativa de golpe dos integralistas em 1938, quando era ministro da Guerra do Governo de Getúlio Vargas – que venceu as eleições, e o brigadeiro (Aeronáutica) Eduardo Gomes, da União Democrática Nacional (UDN), derrotado.
Nos anos 1950, acirram-se os conflitos, tanto entre civis como entre os militares contra Getúlio Vargas (eleito em 1950 e tomou posse em 1951). Foi uma época de intensa politização das Forças Armadas, na qual alguns setores fizeram intensa oposição ao governo, assim como civis, representada pela UDN, com o governador da Guanabara Carlos Lacerda à frente e juntos formaram o que chamaram de Cruzada Democrática.
Em fevereiro de 1954, 82 coronéis e tenentes-coronéis publicaram um manifesto com ampla repercussão nos meios civis e militares com críticas ao governo, e depois do atentado contra o governador Carlos Lacerda, em 5 de agosto de 1954, 19 generais entregaram ao presidente um manifesto no qual pediam a sua renúncia. Pouco depois, no dia 24 de agosto de 1954, o presidente se suicidou.
Do suicídio de Vargas até o golpe de março de 1964, houve muitas crises, com tentativas de golpe, como a que foi impedida pelo general Henrique Lott, em 1955, e no início dos anos 1960, acirra-se a polarização e entre os muitos episódios de participação dos militares, destaca-se o veto à posse de João Goulart com a renúncia de Jânio Quadros no dia 25 de agosto de 1961, a revolta dos sargentos em 1963 em Brasília (sufocada pelo Exército), a revolta dos marinheiros em março de 1964, que expressou também a polarização no interior das Forças Armadas em relação ao governo de João Goulart (os marinheiros revoltosos foram presos e depois anistiados, o que foi muito criticado pela alta oficialidade). Esse conjunto de fatores agravou a crise que desembocou na intervenção militar em março de 1964.
Em relação ao período militar (1964-1985) há uma extensa literatura. Ressaltaria apenas a transição (negociada), sem rupturas, em 1985, a volta dos governos civis e a Constituição de 1988. Um aspecto importante nesse sentido foi a vitória dos militares, que através de lobbies e pressões, conseguiram a aprovação do artigo 142. Esse artigo regulamenta que as Forças Armadas poderão garantir “a lei e a ordem”, desde que acionadas por qualquer dos três poderes constitucionais.
No entanto, desde então, não houve mais intervenção militar, embora muitos a tenham reivindicado. Mesmo antes das eleições de outubro de 2018, por exemplo, muitos pediam intervenção militar, a volta da ditadura etc., o que não ocorreu.
Embora o atual presidente seja militar da reserva e com muitos militares ocupando cargos importantes no governo, é muito diferente do regime militar. Alfred Stepan, no livro Os militares na política – as mudanças de padrões na vida brasileira analisa a relação dos militares com a política e se refere ao que chama de “padrão moderador” das relações entre civis e militares (e a ruptura deste padrão em 1964), que se remete à forma pela qual se apelam para a intervenção militar e sua instrumentalização pelos civis.
Para ele, a propensão dos militares para intervir politicamente aumenta quando diminui a coesão das elites civis e que os golpes militares tendem a ser vitoriosos quando há elevado grau de legitimidade outorgada por civis, não necessariamente apenas por suas elites, mas também por outros setores, como ocorreu em 1964.
Assim, para compreender com maior alcance o comportamento das Forças Armadas é preciso considerar sua história. Na atualidade, há diversas análises, tentativas de compreensão. Citaria apenas o artigo de LuÍs Nassif, Xadrez das trombadas entre Bolsonaro e o Exército, publicado no Jornal GGN no dia 24/07/2019, no qual ele afirma que o destino do governo Bolsonaro depende de duas vertentes: o quadro econômico e as relações com os militares, ou seja, destaca a importância fundamental dos militares.
Para ele, no front econômico a situação é cada vez mais complexa e no front militar “há sinais de um distanciamento cada vez maior do Exército em relação ao governo” e quanto à cúpula militar, afirma que suas relações com o presidente são confusas, uma vez que ele não a representa, mas se serve dela “e, ao mesmo tempo, a despreza, pois sofreu humilhação pública com sua expulsão, episódio raro na vida de um oficial”.
E destaca que ele tem o apoio de uma minoria, que Nassif chama de “os herdeiros da linha dura”. No entanto, salienta que ele é desprezado pela ala moderna e democrática do Exército “representada pelo general Santos Cruz, que considera Bolsonaro um perigo nacional”. Considera que esse pensamento é majoritário no alto oficialato e na maioria dos 16 oficiais do Alto Comando que se sentem desconfortáveis com a subserviência aos Estados Unidos, expressa nas “críticas internas à maneira como foi conduzido o acordo que entregou a base de Alcântara ao controle americano”.
Para Nassif, há uma ala racional do Exército que tem consciência de que é fundamental preservar espaços democráticos e buscar pontos de consenso com a oposição “Há uma visão interna sobre a necessidade de preservar espaços para a oposição, como condição para a pacificação e para começar a se pensar em um projeto nacional”.
Ao se referir ao comportamento do presidente remete às suas palavras quando chamou o general da reserva Eduardo Rocha Paiva de “melancia” (verde por fora, vermelho por dentro) devido às críticas feitas pelo general em relação aos ataques do presidente aos governadores do Nordeste (o general considerou o comportamento como “antipatriótico” e “incoerente”).
Na avaliação de Nassif “Internamente, aumenta a preocupação com a rapidez com que o governo Bolsonaro está promovendo o desmonte do Estado, inclusive em setores que mexem com a segurança nacional, como o de energia” e que é possível que os “açodamentos” provoquem reações mais incisivas do Alto Comando, especialmente do Exército. Sem informações suficientes, é impossível saber se é de fato uma possibilidade. Por esse conjunto de análises, talvez seja. Mas o talvez seja o mais prudente a se afirmar neste momento.
Referências
Os militares na política – as mudanças de padrões na vida brasileira, de Alfred Stepan (Artenova S.A. 1975)
As forças armadas: política e ideologia no Brasil (1964-1969), de Eliezer Rizzo de Oliveira (Vozes, 1978)
Os militares e a democracia, de Eurico de Lima Figueiredo (Graal, 1980)
Militares: pensamento e ação política, de Eliezer Rizzo de Oliveira (Papirus, 1987)
As Forças Armadas no Brasil, Eliezer Rizzo de Oliveira, Geraldo Cavagnari Filho, João Quartin de Moraes e René Dreifuss (Espaço e Tempo, 1987)
O exército na política: origens da intervenção militar: 1850-1894 (Edusp, 1994)
Em Busca da Identidade: o Exército e a política na sociedade brasileira, de Edmundo Campos Coelho (Record, 2000)
Forças armadas e política no Brasil, de José Murilo de Carvalho (2005, Zahar e relançado em 2019 pela editora Todavia)
Militares e política no Brasil (Expressão Popular, 2018), organizado por Jefferson Rodrigues Barbosa, Leandro Pereira Gonçalves, Marly de Almeida Vianna e Paulo Ribeiro da Cunha
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A necropolítica como forma de subjugar a vida ao poder da morte
Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Homero de Oliveira Costa