Analisada como uma nova (des) ordem capitalista extremada, a lei aprovada no Senado é uma norma antissocial e se destina a conceder mais privilégios a quem já tem
(Homero Costa)
A medida provisória 881, chamada de Medida Provisória da Liberdade Econômica, foi publicada em 30 de abril de 2019 e encaminhada pelo Executivo ao Congresso Nacional no dia seguinte, 1 de maio. Ela institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece entre outros aspectos “garantias de livre mercado”, ou seja, tem como um dos seus princípios a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas e a “intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas”.
No dia 13 de agosto a MP foi aprovada na Câmara dos Deputados com 345 votos a favor e 76 contra. No dia seguinte, ainda foram analisados e rejeitados todos os destaques que defendiam alterações no texto aprovado. Encaminhada ao Senado, foi aprovado, em votação simbólica, no dia 21 de agosto de 2019.
A justificativa da Medida Provisória era a de que traria medidas concretas para a desburocratização e simplificação de processos para empresas e empreendedores. No pouco mais de três meses que ficou na Câmara dos Deputados (considerado o recesso parlamentar de 18 de julho a 1 de agosto) foram propostas e incorporadas alterações em regras trabalhistas, uma delas, que gerou polêmicas, era a que acabava com a restrição ao trabalho nos domingos e feriados.
De acordo com a MP, “se observadas normas de proteção ao meio ambiente, condominiais, de vizinhança e leis trabalhistas, qualquer atividade econômica poderá ser exercida em qualquer horário ou dia da semana, sem cobranças ou encargos adicionais”. O empregador só seria obrigado a conceder folga aos domingos a cada quatro semanas e não precisaria pagar o domingo ou feriado trabalhado em dobro, se determinasse outro dia para folga compensatória.
Esta proposta foi retirada pelo Senado e como houve apenas esta supressão (trabalho aos domingos e feriados) e não modificações ou acréscimos em relação ao texto aprovado pela Câmara, seguiu para sanção presidencial e assim agora cabe ao presidente da República decidir se sanciona, veta parcialmente ou integralmente o que foi aprovado pelo Congresso Nacional.
Foi aprovada também a criação da carteira de trabalho digital, com os registros feitos no sistema informatizado no qual o trabalhador deve informar o CPF para o empregador realizar os registros (que o trabalhador poderá ter acesso) e também acaba com a exigência de afixação, em local visível, do quadro de horários dos trabalhadores. O registro de entrada e saída será exigido somente de empresa com mais de 20 funcionários (hoje vale para as empresas com mais de dez empregados).
O texto aprovado também altera o Sistema de Escrituração Digital de Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial), sistema digital que obrigou os empregadores (empresa ou pessoa física) a prestar todas as informações referentes a seus funcionários. O sistema havia sido extinto pela Comissão Mista, mas foi aprovado pela Câmara e pelo Senado e prevê a sua substituição por um sistema simplificado de escrituração digital de obrigações previdenciárias, trabalhistas e fiscais.
Também foi revogado o artigo que exigia inspeção por autoridade competente em matéria de segurança e medicina do trabalho para início das atividades em novos estabelecimentos e libera pessoas físicas e empresas para desenvolverem negócios considerados de baixo risco, que poderão contar com dispensa total de licenças, autorizações, inscrições, registros ou alvarás.
Durante a votação dos destaques da Medida Provisória, o plenário da Câmara dos Deputados manteve a permissão para empregadores utilizarem o chamado “registro de ponto por exceção” após um acordo individual de trabalho. O PT defendeu a retirada do registro de ponto por exceção e foi rejeitado por 304 votos a 128. Nessa modalidade de “ponto” não é necessário o controle de entrada e saída e de horário de almoço, sendo apenas necessário o registro de folgas, férias e faltas. Nas regras atuais a prática só vale por acordo coletivo feito entre patrões e sindicatos de trabalhadores.
O registro de ponto por exceção é o sistema segundo o qual deve haver o cumprimento da jornada de trabalho estabelecida, com anotações de atrasos, ausências e horas extras prestadas. Por esse sistema, os registros de entrada e saída só seriam feitos quando o trabalhador prestasse serviço em um horário diferente do habitual, bastando que fosse assinado um acordo individual com o empregador.
Mas, por que gerou tantas polêmicas se o objetivo era de apenas desburocratização e simplificação de processos para empresas e empreendedores e estabelecer o que foi chamado de Liberdade Econômica? Para os que se opuseram, tratava-se do que chamaram de minireforma trabalhista porque altera vários artigos das Leis Trabalhistas e em prejuízo dos trabalhadores. No artigo Anarcocapitalismo publicado na revista Carta Capital de 28 de agosto de 2019, Gilberto Berconici, professor titular da Faculdade de Direito da USP, chama a MP aprovada de “MP da Libertinagem Econômica” e ao analisar as alterações na legislação em vigor, afirma que se trata muito mais de “um manifesto ideológico que se pretende superior à própria Constituição (…). Para ele, a lei aprovada pelo Congresso defende uma “única interpretação possível da atuação econômica do Estado, como se o seu texto houvesse instituído uma economia de mercado ‘pura’. Há, portanto “a pretensão de tentar obrigar a adoção pelo Poder Judiciário dessa única interpretação, consistindo em uma forma de imposição de determinada visão ideológica sobre todas as demais”.
Nesse sentido, sua aprovação trará mais desordem, com a “imposição da lei do mais forte e a dominação econômica brutal” e também significa “uma ruptura com a tradição jurídica brasileira, pois não pretende regular ou organizar o sistema econômico, mas criar uma nova (des) ordem capitalista extremada: “A MP da Liberdade Econômica é, antes de mais nada, uma norma antissocial, uma verdadeira “MP da Libertinagem Econômica” (que) agravará o desmonte da sociedade, seguindo os passos da malfadada reforma trabalhista de 2016, que desorganizou o ambiente de trabalho no Brasil e gerou milhões de desempregados ou subempregados”.
Assim, quem mais se beneficia são as empresas, que têm entre outros benefícios, a defesa de recursos de multas trabalhistas facilitadas. A lei também dificulta a interdição de locais irregulares de trabalho e retira de órgãos técnicos a decisão sobre as autuações.
No artigo Medida Provisória 881, sejam bem-vindos ao século XVIII, publicado na revista Carta Capital no dia 11 de maio de 2019, Valdete Souto Severo – Doutora em Direito do Trabalho pela USP, professora e Juíza do Trabalho – afirma que a MP que foi encaminhada ao Congresso “também incluía no Código Civil um capítulo sobre Fundo de Investimento, buscando preparar o terreno para o desmanche da previdência contido na PEC 06 (…) e que “por fim, altera vários dispositivos de leis relacionadas a investimentos, em clara postura de proteção ao patrimônio de quem tem condições em atuar com capital financeiro”.
Para ela, a MP, “desafia a Constituição, em um contexto de exceção como o que estamos vivendo, não é apenas de péssimo gosto e má qualidade técnica. É também um manifesto. Um alerta grave sobre o retorno à lógica do livre mercado, em que a miséria não deve ser combatida, mas estimulada como elemento da reafirmação da sujeição da ‘livre vontade’ ao capital”.
Assim, para responder a pergunta do título do artigo, a lei aprovada pelo Congresso Nacional se destina a conceder mais privilégios a quem já tem, de conceder mais liberdade (econômica) a quem já possui, sem alguns entraves da legislação até então em vigor.
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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Homero de Oliveira Costa