O que vai ocorrer com servidores públicos, caso seja aprovada a proposta de emenda constitucional, do governo, que altera os regimes previdenciários?
A PEC 06/2019, conhecida como proposta de reforma da previdência, tem gerado grandes discussões em todos os setores da sociedade. Entre seus objetivos está a reestruturação de todo o sistema previdenciário brasileiro, incluindo a previdência dos servidores públicos, foco deste trabalho.
Até então a previdência dos servidores públicos é definida pelo artigo 40 da Constituição Federal, que estabelece o direito do servidor a Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS), que são regimes previdenciários separados para os servidores de cada ente federativo, responsáveis pela administração dos recursos e pagamento dos benefícios. Como cada ente federativo tem seu próprio RPPS, tem-se, atualmente, mais de 2000 RPPS diferentes no Brasil, muitos em equilíbrio, mas muitos em déficits atuariais e dificuldades de pagamento dos benefícios de seus segurados.
É importante reconhecer que a PEC 06/2019 traz algumas novidades que pretendem melhorar a regulação e a fiscalização dos RPPS, os quais ainda vivenciam uma legislação pouco punitiva à má gestão.
É importante reconhecer que a PEC 06/2019 traz algumas novidades que pretendem melhorar a regulação e a fiscalização dos RPPS, os quais ainda vivenciam uma legislação pouco punitiva à má gestão. Uma delas é a proibição do uso dos recursos advindos das contribuições para fins não previdenciários, ou seja, não será mais permitido o uso dos recursos do RPPS para outras finalidades. Outra diz respeito à melhora na redação sobre a exigência de equilíbrio atuarial na definição de benefícios e contribuições dos RPPS. Caso não haja equilíbrio, o ente federativo deixará de ter o RPPS e os servidores voltam a ser de responsabilidade do RGPS. A redação da proposta também indica que a lei complementar disporá sobre “medidas de prevenção, identificação e tratamento de riscos atuariais, incluídos aqueles relacionados com a política de gestão de pessoal”. Essa parte do texto é bastante prudente, uma vez que uma das maiores dificuldades dos RPPS diz respeito ao tratamento desses riscos. Nesse e em outros pontos, a legislação dos RPPS se tornará mais próxima da das entidades fechadas de previdência complementar, que já observou avanços significativos em relação à governança e administração de riscos.
Em relação às punições aos Estados e municípios que possuem RPPS e que não cumpram as regras definidas na legislação, a redação deixa claro que nesse caso os entes federativos ficarão proibidos de receber verbas da união ou empréstimos. Isso já era definido por meio de portaria, mas muitos estados e municípios conseguiam reverter por ações judiciais. Incorporar tal punição à Constituição provavelmente dificultará os recursos judiciais e, ao mesmo tempo, deve incentivar a adimplência dos entes aos seus regimes previdenciários. Contudo, diferentemente da portaria, a redação não trata das exceções como repasses da união para educação, saúde e assistência social do ente, tornando a irregularidade previdenciária ainda mais grave para as contas municipais e estaduais, principalmente em municípios onde os recursos da União são a principal fonte financeira.
Na redação da PEC 06/2019, a instituição de Previdência Complementar (PC) para a União, estados e municípios se torna obrigatória. Porém, para a grande maioria dos municípios, não há necessidade de PC, pois os salários da quase totalidade dos servidores são menores que o teto do RGPS. Portanto, é necessário estabelecer critérios para esse tipo de determinação. Outra redação confusa está presente na frase do parágrafo 15, artigo 40, “poderá autorizar o patrocínio de plano administrado por entidade fechada”. Essa expressão deveria indicar que pode-se recorrer a Entidade Fechada para administrar os planos de PC dos servidores. Porém, da forma como está escrito, pode dar margem para a interpretação de que o patrocínio do ente federativo, ou seja, a contribuição patronal, é opcional. Sobre este tema, a PEC deveria também versar sobre o veto de utilização dos recursos da PC para outros fins que não sejam os previdenciários, conforme fez para os recursos do RPPS.
Nesses termos, a previdência básica, que deveria ser uma política pública, conforme sua definição, será transformada em um benefício conforme ocorre nas Previdência Complementar no setor privado, dependente exclusivamente das contribuições e da rentabilidade.
Contudo, as mudanças propostas mais preocupantes são aquelas referentes ao sistema de financiamento e ao tipo de plano previdenciário. De acordo com a redação, a proposta é que os RPPS sejam da modalidade contribuição definida, seja ela capitalizada ou por contas nocionais. Por essa modalidade, cada trabalhador passa a ter uma conta individual e não há mais a necessidade do ente federativo garantir um benefício previamente definido, de forma que o servidor receberá o valor de aposentadoria conforme o seu montante acumulado na sua conta individual. Ou seja, o mutualismo e o caráter de política pública contributiva que existia no regime de repartição simples com benefício definido (caso dos RPPS mais antigos) e no de capitalização com benefício definido (RPPS mais recentes) não mais estará presente. Nesses termos, a previdência básica, que deveria ser uma política pública, conforme sua definição, será transformada em um benefício conforme ocorre nas PC no setor privado, dependente exclusivamente das contribuições e da rentabilidade.
Pela proposta, não está claro como se dará essa transição (como será e qual custo terá). No Chile essa garantia não era prevista até 2008, acarretando em aposentadorias miseráveis, abaixo do salário mínimo entre 2007 e 2014. Mesmo que o salário mínimo seja garantido, os riscos desse fundo passam a ser exclusivamente dos trabalhadores, pois pela contribuição definida não há garantias do que será retornado como benefício, poderá ser mais, igual ou menos do que se imaginava, a depender da rentabilidade do fundo.
Essa mudança é bastante conveniente para os entes federativos, pois se faltarem recursos o RPPS não é obrigado a pagar os benefícios, ou seja, não terão déficit, o servidor receberá aquilo que acumulou. Cabe ressaltar que se essas mudanças de fato ocorrerem, a previdência básica terá os mesmos moldes da previdência complementar para os servidores públicos, com a diferença que a PC é capitalizada, e os recursos acumulados aumentam segundo a rentabilidade observada no mercado financeiro. Pela proposta atual da reforma, serão admitidas capitalização ou contas nocionais.
Os riscos desse fundo passam a ser exclusivamente dos trabalhadores, pois pela contribuição definida não há garantias do que será retornado como benefício, poderá ser mais, igual ou menos do que se imaginava, a depender da rentabilidade do fundo.
Nesse último tipo de financiamento não há acumulação de recursos e, portanto, não se observa a rentabilidade do mercado financeiro nem fica definida, na constituição, qual será a rentabilidade a ser aplicada sobre as contribuições. Provavelmente essa rentabilidade será definida em lei complementar, mas não fica claro se será dependente do ente federativo a que está vinculado o RPPS ou se será a mesma para todos os RPPS, nem fica definido critério mínimo para a atualização dos recursos, podendo ser menor que a observada nos regimes de capitalização em que os recursos relativos a cada contribuinte são remunerados pela rentabilidade observada no mercado financeiro. Como, pela modalidade de contribuição definida os benefícios são proporcionais aos valores acumulados, rentabilidades mais baixas implicam em benefícios menores. Ademais, esse tipo de modalidade não garante benefícios vitalícios, mas benefícios que serão pagos enquanto houver recursos para tal advindos dessas contas individuais. Assim, é possível que o sistema implementado para os servidores públicos seja mais prejudicial aos segurados que o proposto aos trabalhadores vinculados ao RGPS.
Nota da Redação:
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Cristiane Silva Corrêa e Luana Myrrha. Professoras do Programa de Pós-Graduação em Demografia e da graduação em Ciências Atuariais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.