Artigo do professor Homero de Oliveira Costa, da UFRN, usa conceitos do filósofo italiano Giorgio Agamben para explicar o momento social porque passa o Brasil
No dia 4 de novembro de 2016, policiais do Grupo Armado de Repressão a Roubo, do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (GARRA/DEIC) de São Paulo, invadiu a sede da Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Sem Terras (MST), localizada no município de Guararema (SP). No dia seguinte, ocorreu um ato de solidariedade às vítimas e a escola, com a presença de parlamentares, representantes dos movimentos populares e de sindicatos e contou, também, com a presença do ex-presidente Lula. A Invasão foi considerada truculenta, arbitrária e ilegal (sem mandado judicial). A ex-presidente Dilma Rousseff também se pronunciou através de uma nota publicada em seu site e nas redes sociais, afirmando que o país vive um “Estado de Exceção” e condenou a ação policial. Para ela é “assustador que o retrocesso que vem ocorrendo no Brasil, iniciado com o golpe” e que “a invasão da escola (…) é um precedente grave. Não há porque admitir ações policiais repressivas que resultem em tiros e ameaças letais, ainda mais em uma escola”. Segundo a ex-presidente, é inaceitável criminalizar o MST e que “não se pode conviver com cenas em que policiais submetem estudantes a algemas e ao cárcere. Isso é inadmissível em uma democracia”.
A invasão da escola, no entanto, com o pretexto de combate ao crime, não foi um ato isolado. O que se tem observado no país é um perigoso crescimento de medidas próprias de Estado de Exceção, com o agravante de ser “naturalizada” na sociedade, sem perceber a gravidade da supressão paulatina de direitos assegurados na Constituição.
Mas, isso significa que estamos vivendo num Estado de Exceção? Seu conceito tem origem jurídica e se refere a um fenômeno social específico: a suspensão do Estado de Direito… através do direito. A justificativa para a suspensão de direitos e garantias constitucionais é que a exceção pode ser possível em momentos de grave crise política. Para o filósofo italiano Giorgio Agamben no livro Estado de Exceção esse tipo de estado organiza as estruturas que legitimam a violência, a arbitrariedade e a suspensão dos direitos, em nome da segurança.
Num artigo em que denuncia as arbitrariedades policiais como a invasão da Escola Nacional Florestan Fernandes, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos afirma que “Esta ação de intimidação e criminalização de um dos mais importantes movimentos sociais do Brasil e de todo continente, ocorre num contexto mais amplo de intensificação de ataques a direitos, impulsionado pelo recente golpe parlamentar, jurídico e midiático que culminou com uma troca ilegítima no comando do Executivo Federal e na adoção de uma agenda regressiva e conservadora levada a cabo pelo contestado governo atual”. E continua: “Nos últimos tempos no Brasil, repetem-se notícias e ocorrências de perseguições e criminalização de movimentos e organizações sociais, de cerceamento da liberdade de expressão e manifestação política por parte de artistas, estudantes e professores, bem como de desrespeito de direitos fundamentais, reforçando um quadro repleto de traços daquilo que temos denunciado amplamente como ‘fascismo social’.
O que se observa é um recrudescimento do Estado penal e de um processo de criminalização dos movimentos sociais que antecede este governo. No entanto, é fato que vão se acumulando ocorrências do emprego de medidas que sinaliza uma perigosa escalada antidemocrática. As violações à Constituição, as agressões à democracia se banalizam, ao retirar direitos e afrontar o Estado democrático de Direito, e desta forma, um Estado cada vez mais autoritário vai ganhando espaço, uma tendência crescente de suspensão do direito de reunião e de manifestação política e abuso de poder e de autoridade.
Para o cientista político Luis Felipe Miguel no artigo “Transição à ditadura”, escrito e publicado depois do impeachment de Dilma Rousseff, o país vive um momento de transição para uma ditadura: “Assim como sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura de novo tipo. Alguns talvez prefiram o termo ‘semidemocracia’, mas eu não acredito nesse eufemismo. O regime eleitoral já é uma ‘semidemocracia’, uma vez que a soberania popular é muito tênue, muito limitada. Estaríamos entrando, então, numa ‘semi-semidemocracia’. ‘Ditadura’ é mais direto, corresponde ao núcleo essencial do sentido da palavra e tem a grande vantagem de sinalizar claramente a direção que tomamos: concentração do poder, diminuição da sensibilidade às demandas populares, retração de direitos e ampliação da coerção estatal. Essa ditadura não será o regime de um ditador pessoal, até porque nenhum dos possíveis candidatos ao posto tem força suficiente para alcançá-lo. Não será uma ditadura das forças armadas, ainda que sua participação na repressão tenda a crescer. Provavelmente, muitos dos rituais do Estado de direito e da democracia eleitoral serão mantidos, mas cada vez mais esvaziados de sentido. Ou seja: a transição que vivemos é de uma democracia insuficiente para uma ditadura velada. As debilidades do arranjo democrático anterior, que era demasiado vulnerável à influência desproporcional de grupos privilegiados, não serão desafiadas, muito pelo contrário. Ao mesmo tempo, alguns procedimentos até agora vigentes estão sendo cortados, seletivamente, de maneira que mesmo o arranjo formal da democracia liberal vai sendo desfigurado”.
As violações dos direitos individuais são cotidianas. E, numa sociedade de classe, há o uso da violência de classe quando ao aparato estatal prende e condena majoritariamente os pobres. E o Brasil, como se sabe, já teve, ao longo de sua história, diversos momentos de exceção (ditaduras), de suspensão de garantias de direitos, em nome da Ordem, mudando a Constituição de acordo com a conveniência dos que estavam no poder. O Estado nas sociedades de classes, não é um estado neutro, mas um instrumento de dominação social, com seu aparato burocrático, jurídico e policial e que desde sua formação, age combinando diferentes formas de garantias da ordem. A repressão, quando necessária, ou a busca da formação de consensos, com o objetivo de se legitimar.
Mas, mesmo numa sociedade de classes, existem Constituições, resultado de muitos embates na sociedade, que estabelecem garantias de direitos e embora preveja a possibilidade de sua suspensão, é de fundamental importância à luta pela manutenção de um Estado de Direito porque estabelece limites à atuação dos poderes e às arbitrariedades do Estado, como a supressão do habeas corpus, o direito de ampla defesa, de não ser preso sem uma acusação formal e dentro do rito do devido processo legal etc.
Daí porque, como afirma Boaventura de Sousa Santos frente a esse panorama de sucessivos ataques às bases do Estado democrático de direito, não podemos silenciar. Em casos de violências como a que ocorreu na invasão da Escola Nacional Florestan Fernandes “além de repudiar a absurda e desmesurada violência perpetrada contra a ENFF, as vítimas desse episódio desastroso de ataque policial e a tudo o que a escola simboliza” é necessário “reafirmar e apoiar os direitos do MST e dos demais movimentos sociais de se manifestarem e de se organizarem de forma livre, democrática e autônoma, pois entendemos que Lutar não é crime”. A manutenção do Estado de Direito é condição fundamental para a garantia e ampliação dos espaços democráticos.
Homero de Oliveira Costa – professor do Departamento de ciências sociais da UFRN
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