Professora do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais da UFRN, Luana Myrrha, analisa dados sobre o trabalho doméstico no Brasil.
No meu primeiro trabalho científico, em 2006, analisei a heterogeneidade do emprego doméstico no Brasil. Este tema de pesquisa sempre me despertou interesse, tanto por questões profissionais, como pessoais. Profissionais, porque as discussões sobre mercado de trabalho e as relações de gênero são essenciais no campo da demografia e pessoais porque o emprego doméstico sempre fez parte da minha vida, direta ou indiretamente. Minha mãe, diferentemente da maioria das mulheres de sua geração, se graduou em engenharia civil e enfrentou um contexto profissional no qual os homens predominam até os dias de hoje. Ao mesmo tempo sentia a pressão social de gerenciar uma casa, um marido e 3 filhos. O contexto daquela época, há 30 anos, era de uma sociedade ainda mais machista, onde a desigualdade de gênero era facilmente justificada e todo o cuidado da casa e dos filhos era naturalizado como atribuição da mulher.
De modo que, terceirizar parte deste trabalho era fundamental para obter êxito. Assim como hoje, contrata-se outras mulheres como empregadas domésticas para mercantilizar a dupla jornada de trabalho à qual as mulheres estão submetidas. Mas ainda assim, o emprego doméstico ainda é feminino, essas mulheres também têm filhos e casa para gerenciar, mas quase sempre não têm a mesma chance de transferir tal trabalho. Atualmente, concomitante à ausência institucional do cuidado da criança, com ofertas de creches e escolas gratuitas em tempo integral, a maior parte do trabalho doméstico continua sendo responsabilidade de uma mulher. Portanto, apesar de grandes avanços nas relações de gênero nos últimos anos, ainda é preciso terceirizar os afazeres domésticos e o cuidado com os filhos. O emprego doméstico continua sendo uma ocupação de extrema importância na sociedade brasileira, principalmente para as mulheres, mas o que dizer das condições das mulheres ocupadas no emprego doméstico?
O emprego doméstico surgiu no Brasil como uma das poucas opções de trabalho com remuneração em bens ou espécie para as mulheres livres, após a abolição da escravidão, uma vez que os cuidados domésticos eram considerados afazeres tipicamente femininos. Com o passar do tempo, ocorreram mudanças significativas no papel da mulher na sociedade brasileira, devido ao crescimento da participação feminina no mercado de trabalho, ao aumento da escolaridade feminina e à redução do tamanho das proles. Entretanto, a igualdade de gênero dentro do domicílio ainda está distante de ocorrer e, por isso, os afazeres domésticos ainda são considerados como responsabilidade da mulher, independente da sua situação social e de sua posição na família. Consequentemente, o emprego doméstico continua sendo uma ocupação tipicamente feminina e que absorve uma importante parcela das mulheres. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2013, mais de 90% do total de pessoas ocupadas nesta classe trabalhadora são mulheres e o peso do emprego doméstico no conjunto da força de trabalho feminina, atualmente representa cerca de 15% de todas as trabalhadoras. Outras duas importantes características do emprego doméstico são: a sua regulamentação ainda desigual frente aos trabalhadores formais e a dificuldade de fiscalização por ser um trabalho realizado dentro das residências dos patrões. Ambas oportunizam a informalidade, a exploração do tempo de trabalho, a ausência do descanso, a remuneração fraudada, a exploração do trabalho, entre outros. De acordo com PNAD (2013), cerca de 60% dos empregados domésticos não estavam formalizados ou contribuindo autonomamente para Previdência Social.
Recentemente, a legislação do emprego doméstico sofreu alterações com a famosa “PEC das domésticas” – Emenda Constitucional 72/2013 (EC72/2013) e a Lei Complementar 150/2015 (LC150/2015) que ampliaram o rol de direitos já existentes. Dentre os direitos mais significativos adquiridos com a EC 72/2013, foi o estabelecimento da jornada de trabalho de até oito horas diárias e 44 semanais; hora extra de, no mínimo, 50% acima da hora normal. Os patrões passaram a ter que controlar a jornada de trabalho dos seus empregados domésticos por meio da folha de ponto. De acordo com a comparação das informações da PNAD 2012 e 2014, pode se inferir que houve uma redução nas jornadas de trabalho acima de 44 horas semanais. Para as domésticas chefes de domicílio, essa redução foi de 6,11 pontos percentuais e para as domésticas que residem com seus patrões, 18,07 pontos percentuais. Para as últimas, a informação da jornada foi prestada pelo responsável pelo domicílio (patrão(a)), por isso, para elas essa redução pode ter sido bem menor ou nem mesmo ter ocorrido. Com relação à formalidade, os resultados evidenciam que após a EC72/2013 não houve mudanças significativas.
O desejável é que os direitos adquiridos pelas trabalhadoras domésticas façam com que as mulheres em situação de maior precariedade passem a ter uma situação menos desfavorável dentro dessa ocupação, ou seja, reduzir a informalidade, a alta jornada de trabalho, os baixos salários e a exploração da sua força de trabalho. No entanto, o aumento dos encargos patronais pode ter um efeito reverso, dependendo principalmente do cenário econômico. Assim, ao invés de ocorrer maior formalização das mensalistas sem carteira, a maior mobilidade pode caminhar na direção da categoria das diaristas que, em sua maioria, também permanece na informalidade e na ausência de proteção previdenciária. Por isso, espera-se que o efeito da LC150/2015 tenha um maior impacto na mobilidade de diaristas e mensalistas formais/informais, uma vez que essa lei elevou em 8% os encargos patronais e determinou o pagamento do salário família para mulheres com filhos abaixo de 14 anos.
Ainda há muitos pontos que merecem ser analisados no processo de transformações recentes que ocorrem no contexto desta ocupação. Com o processo de envelhecimento e o aumento da longevidade, tende a haver maior demanda por empregados domésticos para o cuidado de idosos também. Mas independentemente das atividades desenvolvidas por essa categoria ocupacional, os empregos domésticos continuarão sendo desenvolvidos por mulheres ajudando outras mulheres a enfrentar uma dupla jornada. Visto por esse ângulo, parece que avançamos mesmo muito pouco. Infelizmente.
Luana Junqueira Dias Myrrha é doutora e mestre em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Adjunta do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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