A permanência do autoritarismo na sociedade brasileira aponta para a necessidade da defesa da democracia
(Homero Costa)
No livro A Revolução Burguesa no Brasil (1975) o sociólogo Florestan Fernandes mostra que um dos principais dilemas da sociedade brasileira é que ela não consegue desvincular-se do seu passado autoritário e escravista. Um autoritarismo (segundo o dicionário Houaiss, é um sistema político que concentra poder nas mãos de uma autoridade ou pequena elite autocrática) que está profundamente arraigado na sociedade brasileira e que pode, em parte, explicar, hoje, a adesão de parcelas significativas da população às saídas autoritárias e antidemocráticas, como a defesa de ditadura, de intervenção militar, fechamento do Congresso Nacional etc.
Como afirma Marilena Chauí, o autoritarismo na sociedade brasileira “está de tal modo interiorizado nos corações e mentes que ouvimos com naturalidade a pergunta: ‘sabe com quem está falando?’ sem nos espantarmos de que isso seja o modo fundamental de estabelecer relação social como relação hierárquica” (Democracia e sociedade totalitária. Revista Comunicação & Informação. v. 15, n.2, p. 149-161, jul./dez. 2012).
Ao analisar a permanência do autoritarismo na sociedade brasileira, Florestan Fernandes mostra os limites da democracia no Brasil, afirmando que ela não pode se desvincular de seu conteúdo de classe, e que ao longo da história, se formou uma elite que não permite a participação efetiva do povo; um país caracterizado por grande e persistente concentração de renda e terra, déficit de educação, moradia, transporte, segurança e direitos sociais e políticos etc.
Historicamente, a burguesia nacional (e internacional) não permite que haja uma efetiva democratização do poder. Pode até permitir eleições, desde que não ponha em risco a concentração de poder e privilégios, portanto, uma democracia sempre limitada.
Para Florestan Fernandes, uma democracia só pode se afirmar como conseqüência de uma “revolução contra a ordem” e que só pode existir quando existe uma divisão do poder, quando a luta de classes ocupa um espaço político legitimo para sua manifestação. Assim, “as possibilidades da liberdade e da igualdade exigem o reconhecimento do conflito de classes, porque permite aos de ‘baixo’, às classes subalternas, frear as ambições de poder e privilégios dos de ‘cima’, dos poderosos”.
Para ele, há uma incompatibilidade entre democracia e capitalismo e no caso do Brasil, agravado pelo fato de ter um capitalismo dependente no qual as classes dominantes inviabilizam a participação popular, que não possa ir além da realização de eleições, também fortemente influenciadas por eles, com o financiamento de campanhas, constituição de bancadas nos parlamentos para a defesa dos seus interesses etc. Para ele, o que existe é uma autocracia, um governo organizado de cima para baixo e, portanto antítese de democracia. Autocracia a que ele se refere, se expressa como uma característica da concentração do poder, como um dos seus pilares, que não admite a transição de uma democracia restrita para uma democracia participativa.
Historicamente, há uma raiz autoritária e de exclusão na sociedade brasileira que permanece desde a colônia, com novas formas de mando e manutenção de privilégios. Desde sempre, uma inequívoca associação entre mandonismo e concentração de propriedade, renda e poder político. Sergio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936)l se refere a um desses componentes, o patrimonialismo como forma de poder em que as fronteiras entre as esferas públicas e privadas se confundem e na qual o apadrinhamento, mandonismo e clientelismo são consequências.
No livro Sobre o autoritarismo brasileiro (Companhia das Letras, 2019) Lilia Schwarcz analisa o autoritarismo brasileiro numa perspectiva histórica. O livro é dividido em oito capítulos (escravidão e racismo, mandonismo, patrimonialismo, corrupção, desigualdade social, violência, raça e gênero e intolerância) mostra que, para compreender o presente, é necessário se remeter ao nosso passado “autoritário, escravocrata, controlado pelos mandões locais”.
Todos os temas dos capítulos listados acima estavam presentes no Brasil Colônia, e que, com exceção da escravidão (oficial), se manteve durante a República (que nunca foi republicana no sentido rigoroso do termo, ou seja, de coisa pública) caracterizada desde o início pela privatização do Estado, com participação popular restrita e como uma das suas conseqüências, a ausência de direitos básicos como moradia, saúde, educação, transporte, lazer, segurança, enfim, de uma cidadania sempre precária. A República apenas deu continuidade as práticas de mandonismo, racismo, patrimonialismo, corrupção, desigualdade social, violência e intolerância do período anterior.
É que mostra o livro Coronelismo, enxada e voto (Forense editora, 1948), de Vitor Nunes Leal. Na Primeira República (1889-1930) o poder público deu continuidade ao que existia antes, da colônia ao Império, com o Estado sendo apropriado pelo poder privado, agora controlado por latifundiários, grandes proprietários de terras, limitando a participação popular e o voto. As eleições eram controladas e fraudadas, ou seja, as fraudes eleitorais eram práticas correntes e acontecia em todas as fases do processo eleitoral (manipulações das mesas eleitorais, eleição de “bico de pena” etc.) enfim, práticas generalizadas de controle e corrupção.
No pós 1930, houve inegavelmente maior controle do processo eleitoral, com a criação da Justiça Eleitoral em 1932 e de tribunais eleitorais que, a cada eleição, criavam regras mais rígidas para se evitar as fraudes eleitorais. No entanto, essencialmente não mudou o controle do Estado pelas classes dominantes, que, ao longo do tempo, alternou períodos de ditaduras (1937-1945 e 1964-1985) e experiências de democracia limitada (1945-1964 e o pós 1985), com persistentes déficits de participação popular efetiva, de exclusão social, econômica e política.
O poder das classes dominantes se expressa, entre outros aspectos, no domínio do aparelho de Estado, na representação política, na composição do Congresso Nacional. Quando se analisam o legado do poder privado na máquina governamental os dados disponibilizados pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e citado no livro de Lília Schwarcz, mostram como a bancada dos parentes continua crescendo: “Na Câmara, em 2014 foram eleitos 113 deputados com sobrenomes oligárquicos, sendo parentes de políticos estabelecidos. Nas eleições de 2018, o número de parlamentares com vínculos familiares aumentou para 172”, ou seja, a continuidade do controle do congresso por famílias e oligarquias regionais.
Para Schwarcz, se é necessário compreender o passado para o entendimento do presente, não existe uma continuidade mecânica, mas quando se refere implicitamente ao processo eleitoral recente afirma que “a raiz autoritária de nossa política corre o perigo de prolongar-se, a despeito dos novos estilos de governabilidade. Mais uma vez, igualdade e diversidade, sentimentos e valores próprios da expansão dos direitos democráticos, correm perigo quando não se rompe com a figura mítica do pai político – agora uma espécie de chefe virtual, que fala em nome e no lugar dos filhos e dependentes -, do herói destacado e excepcional, do líder idealizado” (p. 63).
Num momento em que há uma guinada autoritária de parcelas significativas da sociedade brasileira, que acha que a adoção da maioridade penal e o incentivo ao armamento dos cidadãos, por exemplo, vai resolver ou diminuir a violência no país, quando a raiz está nas desigualdades sociais, construída historicamente, num momento de crise, social, política econômica e democrática, há mais do que nunca a necessidade da defesa da democracia, mesmo que limitada, mas que possibilite o combate ao ódio, a intolerância e a desigualdade social e contra tudo que ameace as conquistas e garantias constitucionais.
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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Homero de Oliveira Costa