Coronavírus e o Estado de exceção Artigos

sexta-feira, 27 março 2020
Foto: Christiano Antonucci – Secom-MT/ FOTOS PUBLICAS

Pode um vírus destruir um sistema econômico?

(Homero Costa)

A pandemia do coronavírus tem suscitado um conjunto de reflexões importantes. Desde situá-la no contexto de um estado de exceção como fez Giorgio Agamben, estado de exceção provocada por uma emergência imotivada, artigo publicado no dia 26 de fevereiro de 202 no Il Manifesto, quando o governo italiano anunciava medidas para conter o avanço do coronavírus; há os que defendem que um simples vírus desestabilizou o neoliberalismo em escala mundial e deu um golpe mortal no capitalismo (Slavoj Zikek um golpe letal no capitalismo para reinventar a sociedade), outros defendendo a necessidade de, diante da epidemia, os socialistas se lembrarem do princípio e da urgência da solidariedade internacional, com o entendimento de que a pandemia parece ser biologicamente insustentável na ausência de uma infraestrutura verdadeiramente internacional de saúde pública (A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo, Mike Davis), e também quem argumente que, apesar de suas graves consequências, o vírus não vencerá o capitalismo (Byung-Chul Han em O coronavirus de hoje e o mundo de amanhã).

Há outros aspectos relevantes postos em debate sobre o coronavírus. Silvia Ribeiro, pesquisadora e diretora na América Latina do Grupo de Acción sobre Erosión, Tecnología y Concentración – ETC une Coronavírus, agronegócio e estado de exceção. Em artigo publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos no dia 4 de março de 2020, afirma que há questões relevantes pouco discutidos sobre o tema, como o perverso mecanismo do capitalismo de ocultar as verdadeiras causas e ainda lucra como a cura dos sintomas. Também se refere aos gastos de recursos públicos “em medidas de prevenção, contenção e tratamento, que tampouco atuam sobre as causas, de modo que esta forma de “enfrentar” os problemas se transforma em negócio cativo para as transnacionais, por exemplo, com vacinas e medicamentos.

Deste conjunto importante de reflexões, destacaria dois: a de Agamben, sobre o estado de exceção e de Byung-Chull sobre o coronavírus. Vejamos.

Para Agamben, naquele momento, eram “frenéticas, irracionais e totalmente imotivadas medidas de emergência para uma suposta epidemia devida ao coronavírus e afirma que “a infecção, pelos dados epidemiológicos hoje disponíveis sobre dezenas de milhares de casos, causa sintomas leves/moderados (um tipo de gripe) em 80-90% dos casos. Em 10-15%, pode se desenvolver uma pneumonia, cujo decurso é benigno na maioria absoluta. Estima-se que apenas 4% dos pacientes necessitem de hospitalização em terapia intensiva “(os dados disponibilizados no dia 25 de março de 2020 sobre a Itália informam que são de em torno de 74 mil infectados e 7,5 mil mortes).

Se assim era, indaga Agamben, porque a mídia e as autoridades estão se empenhando a espalhar um clima de pânico, provocando um verdadeiro e próprio estado de exceção, com sérias limitações das movimentações e suspensão do funcionamento normal das condições de vida e de trabalho em regiões inteiras? O que explica um comportamento tão desproporcional?

Para ele, são dois fatores. Primeiro, manifesta-se a crescente tendência de usar o estado de exceção como paradigma normal de governo. Segundo, a difusão de um estado de medo que se traduz na necessidade de estados de pânico coletivo, para o qual a epidemia oferece o pretexto ideal.

Como parte do estado de exceção, o decreto-lei aprovado “por razões de higiene e segurança pública” (uma fórmula vaga e indeterminada) resulta de fato em uma verdadeira militarização dos municípios e das áreas afetadas pelo contágio.

Entre as limitações de liberdade previstas pelo decreto, estão a proibição de afastamento (e acesso) do município ou área em questão; suspensão de manifestações ou iniciativas de qualquer natureza; dos serviços educacionais; de todas as viagens pelo país ou para o exterior (impedindo também a entrada no país); suspensão de concurso e de atividades de órgãos públicos (exceto a prestação de serviços essenciais e de utilidade pública e a imposição de quarentena com vigilância ativa nos indivíduos que tiveram contato próximo com casos confirmados da doença.

Mas, isso significa que estamos vivendo num estado de exceção? Para Agamben o conceito tem origem jurídica e se refere a um fenômeno social específico: a suspensão do Estado de Direito, com a justificativa de que a suspensão de direitos e garantias constitucionais é uma exceção que pode ser possível em momentos de grave crise política. Para ele esse tipo de estado organiza as estruturas que legitimam a violência, a arbitrariedade e a suspensão dos direitos, em nome da segurança.

Assim, o estado de exceção pode ser, em determinada circunstância, um mecanismo jurídico de defesa da democracia, como em casos de ameaça externa, por exemplo, mas uma vez o perigo neutralizado, a democracia seria restabelecida. Nesse sentido, como o próprio nome sugere, seria uma anomalia, uma exceção à regra democrática.

De acordo com o argumento de Agamben, o perigo hoje é que o expediente jurídico da exceção pode se tornar permanente. E isso antecede a pandemia do coronavírus. No caso do Brasil, por exemplo, alguns autores apontam, desde bem antes da pandemia, a existência de um estado de exceção. É o caso de Lenio Streck num artigo publicado em junho de 2017 21 razões pelas quais já estamos em Estado de exceção.

Em relação a Byung-Chul Han, filósofo e ensaísta sul-coreano, professor na Universidade de Artes de Berlim e autor de vários livros, entre eles A Sociedade do Cansaço (2010) no artigo O coronavirus de hoje e o mundo de amanhã, analisa a pandemia tendo como referência, entre outros aspectos, as diferenças entre os países asiáticos e a Europa. Segundo ele, o sucesso nos países asiáticos se dá porque China, Japão, Taiwan, Hong Kong e Singapura têm uma mentalidade autoritária, que vem de sua tradição cultural. O sucesso da China se dá pela existência de um estado policial digital (telefonia celular e de internet compartilham os dados de seus clientes com os serviços de segurança e os ministérios da saúde), aludindo à existência de 200 milhões de câmeras de vigilância “muitas delas com uma técnica muito eficiente de reconhecimento facial” e que “não há nenhum momento da vida cotidiana que não esteja submetido à observação” com capacidade de vigiar qualquer um nos espaços públicos, ao mesmo tempo em que a consciência crítica diante da vigilância digital é praticamente inexistente “Não são levadas muito em consideração a proteção de dados e a esfera privada”.

E cita como exemplo a Coréia, na qual todos os edifícios foram instalados câmeras de vigilância em cada andar, em cada escritório e em cada loja “É praticamente impossível se mover em espaços públicos sem ser filmado por uma câmera de vídeo. Com os dados do telefone celular e do material filmado por vídeo é possível criar o perfil de movimento completo de um infectado”.

Em relação a China, Raul Zibechi no artigo Coronavírus: a militarização das crises (Coronavírus e a luta de classes, 2020) se refere a um gigantesco panóptico militar e sanitário, que limita a população a viver trancada e sob permanente vigilância.

Nesse sentido, uma das explicações para seu êxito no combate ao coronavirus é a vigilância digital, ou seja, o combate não se dá apenas com especialistas da área médica, mas principalmente pelos especialistas em informáticas e macrodados. Portanto, o big data tem sido muito mais eficaz para combater o vírus do que o fechamento das fronteiras.

Outro aspecto diz respeito ao uso das máscaras e as diferenças entre a Ásia e Europa. Nesta, quase ninguém usa máscaras (ou não usava no início da pandemia). Na China e em outros países asiáticos, o uso era obrigatório e quando começaram a escassear, houve um grande esforço de reequipar as fábricas e produzir em grande quantidade. Além de serem distribuídas gratuitamente, são máscaras respiratórias especiais capazes de filtrar o ar de vírus e não as habituais máscaras cirúrgicas. Para Byung as máscaras protetoras fornecidas na Ásia a toda a população contribuíram decisivamente para conter a epidemia.

Para ele, apesar de todo o risco, que não deve ser minimizado, o pânico desatado pela pandemia de coronavírus é desproporcional. Nem mesmo a “gripe espanhola”, que foi muito mais letal (A gripe espanhola, foi uma pandemia do vírus influenza e estima-se que de janeiro de 1918 a dezembro de 1920, infectou em torno de 500 milhões de pessoas, cerca de um quarto da população mundial na época, com milhões de mortos, considerada uma das mais mortais da história).

Segundo Byung “Todas as doenças que foram consideradas epidemias nas duas últimas décadas, inclusive o Covid-19, produziram menos mortes que as doenças comuns, como a gripe”. Segundo Silvia Ribeiro, no artigo já referido sobre coronavírus, agronegócio e estado de exceção “A ameaça de pandemia também é seletiva. Todas as doenças que foram consideradas epidemias nas últimas duas décadas, incluindo o Covid-19, produziram muito menos mortes do que doenças comuns como a gripe – das quais, segundo a OMS, até 650 mil pessoas morrem a cada ano em todo o mundo. No entanto, essas “novas” epidemias motivam medidas extremas de vigilância e controle”.

Um dos argumentos principais de Byung-Chull Han é que o vírus não vencerá o capitalismo “nenhum vírus é capaz de fazer a revolução,”, até porque “nos isola e individualiza”, todos preocupados apenas com sua própria sobrevivência. Para ele após a pandemia o capitalismo continuará com ainda mais pujança e a China ainda poderá vender seu Estado policial digital como um modelo de sucesso contra a pandemia exibindo a superioridade do seu sistema.  No entanto, apesar de tudo, afirma que precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Como, não sabe, no entanto, será um grande avanço se servir para poder repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, não apenas vencendo o vírus, mas também a ilimitada capacidade humana de destruição.

O problema neste momento, como alerta Agamben, quando parece quase que esgotado o terrorismo como causa de medidas de exceção, uma epidemia pode oferecer o pretexto ideal para ampliá-las, além de todo limite. Nesse sentido “em um perverso círculo vicioso, a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceita em nome de um desejo de segurança que foi induzido pelos próprios governos que agora intervêm para satisfazê-lo”. A luta, portanto, não é apenas contra a pandemia do coronavíruos, mas também contra o estado de exceção e governos que pensam muito mais em proteger os interesses das elites, das distintas burguesias, do que em salvar e proteger vidas.

Referências

O Estado exceção provocado por uma emergência imotivada – Giorgio Agamben

Zizek sobre o coronavirus: Um golpe letal no capitalismo

A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo, Mike Davis, no livro Coronavírus e a luta de classes (editora sem amos, 2020),

Byung-Chul Han em O coronavirus de hoje e o mundo de amanhã, jornal El País, 22 de março de 2020

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Em defesa  do Estado democrático de direito

Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Homero de Oliveira Costa

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