Somos todos afetados e contagiantes
(Por Josimey Costa da Silva)
Primeiro de uma série de quatro, o artigo da professora Josimey Costa discute a lógica paradoxal da mídia e as nossas subjetividades. Publicando pela primeira vez no Nossa Ciência, Josimey é doutora em Ciências Sociais/Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e pós-doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECOPÓS/UFRJ). É pesquisadora e docente nos programas de pós-graduação em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN) e em Ciências Sociais (PPGCS/UFRN). É membro do Grupo de Estudos Transdisciplinares em Comunicação e Cultura (Marginália/UFRN/CNPq), integrando a linha de pesquisa Comunicação urbana, corpo, estética e imagem. Também é poeta e escritora de contos com diversas publicações. (Por Redação NC)
Os sinais do agravamento da crise de nosso modelo de sociedade, potencializada ainda mais pela pandemia de COVID19 causada por coronavírus, estão por toda parte. Um vídeo postado pela TV247 no Youtube com a participação do jornalista Pepe Escobar aponta um desses sinais numa direção pouco explorada pela mídia jornalística comercial. O foco não era a proteção contra o coronavírus ou a falência do sistema econômico neoliberal mundial, mas a função política do vírus e o controle corporativo centralizado das economias do planeta a partir de um biocontrole individual digital externo ao sujeito.
Para tentar compreender melhor esse enfoque, é preciso analisar os modos de geração das narrativas que circulam no meio social e as próprias formas dessas narrativas, que desempenham um importante papel de controle do mundo da vida. Também é preciso investigar o papel das mídias digitais da comunicação social nesse contexto, dado que é nesse meio que as narrativas majoritariamente se difundem hoje, com seu impacto nas subjetividades expostas a elas. Esse viés reflexivo pressupõe a comunicação como um processo dinâmico, que requer obrigatoriamente a participação de pessoas, mesmo quando requer a mediação de máquinas e linguagem informacional. Por causa do isolamento físico que a pandemia acarretou, nós experimentamos uma maior dependência da informação midiática, bem como uma utilização maximizada das mídias digitais de compartilhamento de conteúdos e das plataformas de streaming. É óbvio que isso é a realidade principalmente dos estratos de maior aquisitivo da pirâmide social, os que pudemos nos isolar e temos equipamentos de comunicação digital e bandas largas para o tráfego dos dados. São esses estratos os que também concentram as reflexões e pesquisas científicas que sondam os limites e os condicionamentos das mídias digitais em nossa sociedade, utilizando essas mesmas mídias para expor os resultados obtidos e tentar, talvez, superar as implicações da virtualidade excessiva. Por si só, essa contradição demonstra a complexidade e a amplitude do problema que enfrentamos juntamente com a solução que pensávamos ser definitiva.
As mídias da comunicação social, sejam analógicas ou digitais, trazem contradições dentro de suas próprias dinâmicas de funcionamento. O hacker abre uma brecha na vigilância e no controle que o deep state tem com os programas de rastreamento e distribuição digital da informação; os GreyHats, os hackers com causa, são apoiados por ONGs como a Open Knowledge, que difunde o conhecimento livre na net; também há empresas como Phyton, que faz linguagem de programação de alto nível com um modelo de desenvolvimento comunitário; ou a Open Source, que desenvolve modelos de software de licenciamento livre. No entanto, iniciativas assim representam uma tendência desviante dentro da corrente hegemônica da nossa realidade atual: tivemos, até agora, não uma efetiva maior liberdade a partir da World Wide Web ou dos smartphones na mão de cada habitante do planeta, nem sequer com a possibilidade de quase todo mundo fazer live desde sua própria casa. Não ficamos sequer mais ricos por “economizar tempo” com a simultaneidade de tarefas que a mídia digital nos propicia; bem ao contrário, gastamos atualmente uma parte importante do nosso dinheiro com a comunicação. E fazemos isso com prazer, sem nenhuma imposição, achando que somos donos dos nossos narizes e da nossa própria voz. Assim, conseguimos coisas boas, mas principalmente produzir montes de memes, difundir amplamente o ódio dos haters e dos fascistas, replicar as transmissões da mídia comercial de massas e pôr nos trend topics do Twitter nossas opiniões sobre o paredão do BBB. Não somos, enfim, livres para querer o que queremos, como já nos avisava Schopenhauer.
Compreender o que ocorre com o mundo e com nós mesmos requer dirigir o olhar para o que está sob o escombro comunicativo, que soterra nossa percepção e oblitera a nossa reflexão. O soterramento perceptivo ou a obliteração reflexiva não são condições exclusivas de indivíduos de segmentos sociais acometidos da rigidez mental fascista ou carentes de instrução formal; somos todos vítimas desse excesso informativo e abuso conectivo dentro da atual sociedade da informação, mesmo a esquerda mais crítica ou os intelectuais mais elaborados. São tantas as notícias, tamanha a demanda que acabamos por deixar de questionar, de propor e até, de enxergar. Para sair deste estado de imobilidade mental, temos que nos aprofundar nas raízes desses fenômenos. Não podemos abranger tudo, mas podemos eleger pensar questões de base, que ajudam a entender os construtos que se erigem sobre essa base. A comunicação interpessoal e coletiva sustenta edifício social. Não há sociedade sem comunicação. O que, por sua vez, sustenta nossas práticas de comunicação desde sempre e agora?
Leia a segunda parte desta série de quatro artigos.
Referências
Cf. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo – Necrose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. (vol. II).
SCHOPENHAEUR, A., O Mundo como Vontade e Representação 1819. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
Josimey Costa da Silva é Doutora em Ciências Sociais/Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e pós-doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECOPÓS/UFRJ). É pesquisadora e docente nos programas de pós-graduação em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN) e em Ciências Sociais (PPGCS/UFRN). É membro do Grupo de Estudos Transdisciplinares em Comunicação e Cultura (Marginália/UFRN/CNPq), integrando a linha de pesquisa Comunicação urbana, corpo, estética e imagem. Também poeta e escritora de contos com diversas publicações.
Josimey Costa da Silva
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