Chamas no RN: o real põe fogo em tudo! Artigos

sexta-feira, 12 agosto 2016

Nesse artigo, o cientista social Alipio Sousa Filho analisa os episódios de violência ocorridos nas ruas de Natal, Mossoró e outras cidades do RN

“O real põe fogo em tudo”, escreveu o psicanalista francês Jacques Lacan, em seu Seminário 23, ao teorizar sobre o que, em sua obra, chamou de Real: um registro do psiquismo inconsciente humano que corresponderia ao que, não se oferecendo à simbolização, permanece foracluído da linguagem, isto é, dos modos humanos, normas e instituições sociais humanas. O Real, em Lacan, remete ao que, no psiquismo, excede a experiência da realidade institucionalizada e sancionada nos significantes e significados que esta produz, a chamada “ordem simbólica” ou simplesmente “o simbólico” – e, como disse o psicanalista, “o simbólico, eu lhes ensinei a identificá-lo como a linguagem”.

O Real (lacaniano) é conceituado como uma espécie de fenômeno bruto do psiquismo inconsciente que continuamente comparece, faz-se presente por intermédio de alguma manifestação, mas sem racionalização e simbolização possível na linguagem: linguagem da ordem simbólica, linguagem da ordem. Linguagem é ordem: “o simbólico constitui um universo no interior do qual tudo o que é humano tem de ordenar-se” (Lacan). Todavia, o Real, na própria medida em que se constitui como foracluído do simbólico, constitui o que empreende sua contínua fuga da linguagem, esvaindo-se, desaparecendo, extraviando-se e, “resistindo absolutamente a toda simbolização”, torna-se o que não se oferece à sujeição da linguagem, sujeição à linguagem da ordem humano-social. É certamente por isso que Lacan também escreveu: “é preciso dizê-lo bem, o real é sem lei. O verdadeiro real implica ausência de lei. O real não tem ordem.”

Como revelaram Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, o conceito de Real em Lacan nasce sob a influência do pensamento de George Bataille, para o qual, nas sociedades humanas e suas instituições, poder-se-ia distinguir dois “polos estruturais”: “de um lado, o homogêneo, ou campo da sociedade útil e produtiva, e de outro, o heterogêneo, lugar de irrupção do impossível de simbolizar. Com a ajuda deste último termo, ele especificou a noção de parte maldita. […] Bataille inventou o termo heterologia… a heterologia era, para ele, a ciência do irrecuperável, que tem por objeto o “improdutivo” por excelência: os restos, os excrementos, a sujeira. Numa palavra, a existência “outra”, expulsa de todas as normas: loucura, delírio etc.” Leitor de Lacan, o filósofo Slavoj Zizek, dirá que o Real “dá corpo àquilo que escapa à realidade (simbolicamente estruturada)”.

Mas, como o Real se manifesta? Na experiência da fala – experiência de falhas de significantes, sentidos, atos falhos – não cessam as aparições daquilo que resiste à simbolização (nomeação, representação, lugar na linguagem), mas há outras tantas aparições que Lacan concebeu como “pela via do impensável”: “sempre que ele [o Real] mostra a ponta do nariz, ele é impensável”. Abordar o Real é abordar o impossível (de ser) na linguagem. Mas não porque o real seja privado de alguma coisa – “no real, nada é privado de nada […]. Por definição, o real é pleno”; “o real é absolutamente sem fissura”. Em outro de seus escritos, assinalou: “o real é ou a totalidade ou o instante esvanecido”.

Aqui, farei minha deriva. As labaredas que vemos subir da combustão da ira solta e da violência das ações de dezenas de indivíduos nas ruas de Natal, Mossoró e outras cidades do RN é o Real em sua aparição, assustadora para alguns. O real em seu antagonismo com a realidade instituída, diria, evocando Zizek. O real da miséria, que foracluímos de nossa vista. O real da desigualdade social, que foracluímos como uma produção histórico-social, tornando-a uma “natureza das coisas”. O real do abandono de milhares de crianças e jovens, que só integramos ao social instituído como destinatários de pieguices e filantropias. O real da exclusão de parcelas inteiras da população brasileira e do RN, foracluídas da festa dos “bem-aventurados”. O real da resistência daqueles que caíram em desgraça, por percalços muitos da vida na qual são jogados, e que a ordem social rapidamente transforma nos monstros morais da ocasião: “indivíduos irrecuperáveis”, “indivíduos a-sociais”. Mas homens e mulheres que não se cansam de tentar viver entre todos, ainda que como os fora-da-lei. O real de seus micropoderes, estratégicos, inteligentes, capilares, e não raramente em simbioses com o próprio aparelho do Estado, através de alguns de seus agentes, por piedade ou corrupção.

Exprimem-se nas chamas douradas do fogo no RN o real das prisões e sua ignomínia. Prisões da miséria, como denunciou Loic Wacquant, que são misérias de prisões. Lugares de torturas, maus-tratos, lugares de práticas sádicas de diretores e agentes penitenciários, lugares de castigo, violência, suplício de corpos e almas. Tudo feito com a cumplicidade da sociedade e do Estado (e cada um daqueles que ocupam as funções públicas em governos que se sucedem), como se as prisões (até quando existam!) não fossem tão somente o lugar do cumprimento de penas de privação de liberdade, mas lugares para castigar, fazer sofrer e humilhar aqueles que nelas chegam.

Nas chamas quentes que sobem empurradas pelo ar, como carregando súplicas aos céus, manifesta-se o real da degradação, do sofrimento e da dor de nossos presos e presas, destituídos de sua humanidade dentro e fora dos cárceres…. O real em sua aparição, como espectros, assustando hipócritas, assustando aqueles que nunca voltaram seus pensamentos e olhares para as prisões como lugares que requerem cuidados, condições dignas de habitação, negociações com seus habitantes provisórios; sim, negociações: que querem os detidos? Quais são suas reivindicações? Quais podem ser atendidas?  O que podemos fazer para que nossos cárceres não sejam a forma atual dos calabouços medievais?

“A revolta atual no RN tem como causa a instalação de bloqueadores de celulares” Que piada… Quem quiser que acredite nisso! O jovem francês Étienne de la Boétie, em seu Discurso da Servidão Voluntária, escreveu: “o próprio povo tolo inventa suas mentiras para acreditar nelas”. Direi aqui: o poder inventa suas mentiras para acreditar nelas! Pois bem, como ensinou Lacan, lição do seu campo específico que aqui integro à minha deriva, o Real insiste! Retorna sempre! “O que é recusado na ordem simbólica ressurge no Real”… Algo mais lúcido se pensarmos o que aí se diz em termos de sociedade ou, de outro modo dito, em termos das relações entre a realidade instituída, legitimada, celebrada como “a” realidade, e o real, tido por impossível, não-representável? Se o Real (lacaniano) é o impossível da palavra, direi, na minha deriva, o real é o impossível em termos dos significantes e significados instituídos, o real é, pois, o que foi barrado/foracluído pela ordem instituída como o impossível, o impensável. Mas, se é verdadeiro que “os significantes foracluídos do simbólico retornam no real”, as palavras, sentimentos e pensamentos não ouvidos de nossos delinquentes e bandidos (ah, como o poder e a mídia amam esses termos!) retornarão sempre através de gestos, delírios, alucinações, loucuras, potencializados ou não pelas drogas, mas, sem dúvida, fundados antes na ira, no ódio e no ressentimento do desamparo social.

O real aí está: nas ruas, tocando fogo em tudo! E não adianta mais repressão, mais polícia, exército nas ruas. Espetáculo que surtirá o efeito do pouco tempo que durará. O real, quanto a ele?, retorna sempre, insiste, resiste! O real, em seu delírio, é pleno, todo, poderoso, destemido, astucioso.

Alipio Sousa Filho é cientista social e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

www.cchla.ufrn.br/alipiosousa

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