Como a modernização da publicação científica pode transformar a avaliação acadêmica no Brasil e atender às demandas da ciência contemporânea
(John Fontenele Araújo)
Caro leitor, se você tem algum envolvimento com a pós-graduação ou acompanha o seu processo de avaliação, deve ter ouvido falar que a CAPES está propondo uma mudança na avaliação da produção acadêmica. Talvez você tenha até lido aqui no Nossa Ciência o texto “O Fim do Qualis?” na coluna Ciência Nordestina, escrita por Helinando Oliveira. Este é um tema que muito tem sido debatido nos últimos meses, tanto entre os cientistas brasileiros quanto na sociedade em geral. Este debate é importante, porém, aqui queremos trazer uma discussão que consideramos fundamental para o fazer ciência e que é preliminar ao debate do fim do Qualis.
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Eu escrevo este texto inspirado na leitura do artigo “Our future, we decide: five ways to reform the scientific publication process”, escrito por um grupo de pesquisadores em estágio inicial de carreira, e que argumentam que o processo de publicação científica precisa ser modernizado para acompanhar as mudanças no mundo da ciência.
Os autores, um grupo de pesquisadores em início de carreira, argumentam que o processo atual não está adaptado à complexidade, interdisciplinaridade e abertura da ciência contemporânea, o que impacta a integridade e o impacto social dos artigos.
Os autores identificam cinco áreas-chave que exigem atenção para permitir uma reforma do processo de publicação científica. Aqui eu apresento os comentários deles e adiciono minhas sugestões que estão em itálico para diferenciar minha opinião das dos autores do artigo.
Embora a IA gere novas possibilidades, como ferramentas para gerar ideias e texto, seu uso levanta preocupações éticas e desafia os princípios da integridade científica. Os autores sugerem que a escrita seja protegida, permitindo o uso da IA apenas no final da preparação do manuscrito. Diretrizes universais e treinamento de pós-graduação são necessários para garantir o uso responsável da IA.
Adicionalmente eu sugiro o uso da IA no início da construção de um manuscrito, pois a AI permiti-nos fazer uma revisão bibliográfica mais ampla. Construir a introdução em duas etapas, primeira via IA ampla, podendo identificar os artigos que estão relacionados com o tema da pesquisa, utilizando uma buscar a partir de itens como conceitos, metodologia, resultados, incluindo resultados favoráveis e contrários, e depois em uma segunda etapa fazer uma leitura detalhada e atenta de artigos fundamentais escolhidos, conforme o resultado da etapa 1.
A capacidade de escolher revisores que sejam adequados é desafio para os editores, pois a falta de reconhecimento desencoraja os acadêmicos de revisar. Outro aspecto é a incompatibilidade entre a especialidade do revisor e o conteúdo do manuscrito prejudica a qualidade da revisão e prolonga os prazos. Os autores propõem um banco de dados global de revisores, aberto e transparente, que possa ser usado pelos editores para encontrar revisores. Isso também permitiria a revisão em larga escala por multidões, com revisores avaliando seções com base em sua própria experiência.
Para superar a falta de reconhecimento dos revisores, sugerimos que as editoras pagam os revisores. Sugiro que nós revisores deixemos um modelo de escravidão e passemos para um modelo uberização, que sejamos remunerados por cada revisão. Outra sugestão é criar um código internacional de conduta de revisores e que isto seja transparente. Como exemplo, citamos uma publicação em que os autores escreveram “Conforme fortemente solicitado pelos revisores, aqui citamos algumas referências [[35], [36], [37], [38], [39], [40], [41], [42], [43], [44], [45], [46], [47]] embora sejam completamente irrelevantes para o presente trabalho” (Veja na figura o original). Este tipo de comportamento de revisor é inaceitável e tem de ser punido. Outra sugestão é criar um sistema de pontuação do trabalho dos revisores, por exemplo ao final do processo, os autores fazem uma avaliação do trabalho dos revisores. Outro aspecto fundamental é a transparência do processo, em que todas as etapas devam ser publicadas juntamente com o artigo como já fazem algumas revistas.
A cultura acadêmica de “publicar ou perecer” pode levar a prática do fazer ciência ser mal executada e não replicável. Os autores defendem a verificação externa, com pesquisadores convidados tentando replicar os principais resultados de um ou dois experimentos. A validação externa, bem-sucedida ou não, seria publicada junto com a publicação original.
No nosso entendimento isto só vale para pesquisa experimental e a produção científica não se reduz a isso. Temos de ter o cuidado com a pesquisa aplicada, em especial na linha de tecnologia e com os experimentos complexos e de alto custo que temos dificuldade de replicá-los. Abrir os dados e permitir a replicabilidade após a publicação ajuda a reduzir este problema.
Esta é uma discussão além da ideia de Ciência Aberta. Os autores sugerem tornar o conteúdo acessível também aos colegas de outras áreas e ao público, escrevendo um resumo leigo, fornecendo resumos gráficos e utilizando podcasts e vídeos com resumos sobre a contribuição do artigo.
Este é o debate que está relacionado à discussão sobre o fim do Qualis. O impacto do pesquisador ainda é geralmente avaliado usando métricas centradas na publicação, como fator de impacto do periódico e número de citações. Isso incentiva práticas como “fatiamento de salame” e “acumulação de dados”. Os autores sugerem o uso de uma “pegada acadêmica holística” que inclua categorias como ensino, trabalho clínico, divulgação, mobilidade, colaboração, supervisão, mentoria e atividades de revisão.
Para nós, a prática científica, incluindo a publicação, não pode ficar restrita ao impacto no campo do conhecimento, mas devemos também buscar o impacto do artigo na sociedade (avaliados por influência em políticas públicas, prêmios, divulgação na imprensa e mídias sociais etc) e o impacto na formação (avaliado a partir da influência do artigo em dissertações e teses e o seu uso em cursos de formação). Estas informações poderiam ser adicionadas nas páginas em que os artigos são publicados através de algoritmos implementados pelas revistas ou pelo autor responsável pela publicação.
Os autores concluem que, embora a publicação científica não vá desaparecer em breve, o processo de publicação precisa ser modernizado para se manter atualizado com o mundo em constante mudança. Eles reconhecem que algumas das soluções propostas exigirão recursos consideráveis e que sua implementação poderá levar tempo e/ou encontrar resistência (por exemplo, de formuladores de políticas e editoras). No entanto, eles acreditam que pequenas ações podem ser tomadas para impulsionar a mudança, como a implementação de diretrizes para o uso da IA em práticas diárias. Cada um desses passos contribuirá para uma transformação mais ampla.
Nossa sugestão é que a comunidade científica precisa se engajar ativamente nesta discussão e agir para reformar o processo de publicação científica de modo a apoiar a ciência complexa, interdisciplinar e aberta necessária para gerar novas descobertas impactantes. Este debate deveria ser preliminar à discussão sobre qual régua usar no processo da avaliação. Todavia, considerando a realidade atual, teremos de trocar os pneus com carro andando.
Leia outro artigo do mesmo autor: Vale a pena fazer pós-graduação no Brasil?
John Fontenele Araujo é professor titular do Departamento de Fisiologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
John Fontenele Araújo
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