Artigo de Cleanto Fernandes para o Nossa Ciência sobre os ritmos da vida e os relógios biológicos tema do Nobel de Medicina e Fisiologia 2017
Um olhar cuidadoso sobre a vida, em suas mais belas e estranhas formas, revela que uma coisa é constante: a presença de ritmos. A vida se desenvolve em ciclos. Existem ciclos que se repetem a cada dia e noite, como nosso ciclo de dormir e acordar ou o cantar do galo, sempre cedo da manhã. Outros são mais longos, podendo levar todo o ano para um ciclo completo – é o caso da hibernação dos animais no inverno ou a floração e frutificação de plantas, associadas à uma época do ano. Outros, ainda, de tão curtos que são, cabem vários em um dia. Como exemplo temos as batidas do coração, que facilmente passam de 100 mil por dia!
Se pensarmos bem, não é surpreendente os seres vivos apresentarem funcionamento e comportamento rítmicos. O ambiente no qual todos vivemos é rítmico – a cada 24h se completa um ciclo de variação na luminosidade e temperatura, consequência de vivermos em um planeta que gira em torno de si mesmo. Para sobreviverem e reproduzirem, os seres vivos, desde as bactérias, evoluíram de forma que estivesse em harmonia com os ciclos ambientais. Se o mundo dá voltas, não seriam os organismos entidades constantes.
Mas a questão importante aqui é: como essa ritmicidade se desenvolve em nós? Desde o século XVIII sabemos que se um ser vivo for colocado em um ambiente constante, ele ainda persiste em apresentação sua ritmicidade. Isso significa que se uma pessoa fora colocada numa caverna escura, sem qualquer variação ambiental e isolada do mundo exterior, ainda assim vai continuar com seu ritmo de dormir acordar e outros ritmos que apresentamos em ciclos de 24 horas: variação da temperatura interna, liberação de hormônios e outras coisas.
Será que temos um relógio dentro de nós, um “relógio biológico”? Com a devida licença poética para uma metáfora, podemos dizer que temos sim, mas não apenas um, e sim vários relógios biológicos. Claro que não são relógios com ponteiros, mas estruturas da matéria viva que geram um ritmo, marca-passos que dão a batida do tempo em nosso corpo.
Se os relógios de ponteiros, ou seu primos mais modernos com leitores digitais, tem suas engrenagens, os relógios biológicos também os tem. O Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia deste ano de 2017 foi concedido a três pesquisadores que deram importante contribuição para o conhecimento sobre como funcionam os relógios biológicos: Jeffrey C. Hall, Michael Rosbash and Michael W. Young. Graças a eles e outros pesquisadores sabemos que, no nível mais íntimo de organização, os relógios biológicos dependem de uma cadeia de reações moleculares dentro das células que ocorre de forma cíclica. É uma engrenagem formada por DNA e proteínas, substâncias comuns e indispensáveis de toda célula, mas que, neste caso, formam uma alça que cria um ciclo dentro da célula.
Para além de revelar algo fundamental sobre a vida, o estudo dos ritmos biológicos amplia horizontes e tem relevância prática imediata. Passa pelo estudo da ritmicidade biológica, por exemplo, a compreensão de problemas de sono e porque as pessoas se sentem mal ao viajarem para locais com fuso horário muito diferente.
Essa é uma área de estudo interessante, e o Nobel só vem a confirmar isso. Enquanto a vida segue, “a vida que pulsa” e oscila, acompanhamos novos avanços sobre o estudo dos ritmos biológicos. Sabemos de certeza que os seres vivos incorporaram o tempo em sua organização funcional, que os seres são intrinsecamente rítmicos, e que a constância, em nosso corpo, só é observada após a morte.
Gratificante ver essa beleza e a ciência que a revela. Gratificante também é lembrar que lá no século XVII um poeta brasileiro, Gregório de Matos, viu a beleza dos ritmos ambientais e compartilhou sua admiração conosco por meio de alguns versos. Peço a segunda licença poética para encerrar seu poema. E que diria ele se soubesse que também há ritmo no interior de nossas células?
A instabilidade das coisa do mundo
por Gregório de Matos Guerra
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.
Cleanto R. Rego Fernandes é professor substituto de Fisiologia e Biologia do Comportamento na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Cleanto R. Rego Fernandes
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