O artigo ressalta que o problema da censura aos livros ocorrida em Rondônia é que não é um caso isolado e nem recente e sim um projeto em andamento.
(Homero Costa)
No dia 6 de fevereiro de 2020, a Secretaria de Educação do estado de Rondônia enviou um documento pedindo a retirada das bibliotecas das escolas uma lista com 43 obras da literatura por serem considerados livros “inadequados às crianças e adolescentes”. Entre outros livros, Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Os Sertões de Euclides da Cunha (na lista consta como Os sertões Da luta – revelando a ignorância de quem elaborou a lista porque o livro, como é facilmente verificável, tem três capítulos: A terra, o Homem e a Luta), constam ainda os poemas escolhidos de Ferreira Gullar, o melhor de Caio Fernando Abreu, O ventre de Carlos Heitor Cony e também Mil e uma noites, atribuído a ele, quando se sabe que se trata de uma adaptação e que a obra obviamente não foi escrita por Cony. O título correto é Histórias das mil e uma noites, publicado em 2014 pela editora Nova Fronteira, e Cony reconta apenas quatro das histórias. Há ainda na lista vários livros de Rubem Fonseca e Nelson Rodrigues, e todos de Rubem Alves, numa demonstração de estupidez sem limites, além de Contos de terror de Edgar Allan Poe e o Castelo de Franz Kafka (que o ministro da Educação confundiu com Kafta…).
Com a repercussão da censura o secretário de Educação do Estado, Suamy Vivecananda Lacerda Abreu afirmou que a lista era uma fake news, mas a informação foi corroborada pela divulgação de um áudio da gerente de Educação Básica que numa mensagem afirmou que o recolhimento foi “um pedido do nosso secretário”.
Segundo o jornal da GGN numa matéria publicada no dia 8 de fevereiro de 2020, Rondônia é o laboratório do conservadorismo, o Estado de Rondônia, governado por um ex-coronel, filiado ao PSL, Marcos Rocha “funciona como uma espécie de farol para o conservadorismo no país. Estruturado na tríade boi, bala e bíblia, o Estado do Norte brasileiro concentra o maior percentual de evangélicos do país (cerca de 34% da população) e também é afetado pela grande concentração de militares em suas fronteiras. Muitos locais consideram a floresta um obstáculo para o desenvolvimento, e o bolsonarismo acabou por agregar pessoas que compartilhavam dos mesmos valores”.
A Academia Brasileira de Letras (ABL) divulgou uma nota de repúdio afirmando que se trata de uma censura que atinge a literatura e as artes: “É um despautério imaginar, em pleno século XXI, a retomada de um índice de livros proibidos. Esse descenso cultural traduz não apenas um anacronismo primário, mas um sintoma de não pequena gravidade, diante da qual não faltará à ação consciente da cidadania e das autoridades constituídas”.
O problema é que não se trata de um caso isolado e nem recente. Não apenas censura, mas também de ignorância. Em abril de 2019, entre outros exemplos, o atual ministro da Educação disse sobre as universidades do Nordeste: “Em vez de as universidades do Nordeste ficarem aí fazendo sociologia, fazendo filosofia o Agreste, devem fazer agronomia, em parceria com Israel”. Também afirmou no jornal da Cidade Online que há vastas plantações de maconha em algumas universidades públicas e também que a culpa pelo baixo desempenho dos alunos é de Paulo Freire…um dos educadores mais respeitados do mundo.
Em editorial publicado no dia 4 de fevereiro de 2020 o jornal Estado de S. Paulo critica a postura do ministro afirmando que “Sua errática gestão – se assim pode ser chamada – à frente de um dos mais importantes Ministérios já seria razão suficiente para sua substituição por quadros mais qualificados” e que “não é de hoje que o ministro se porta em desacordo com a decência que deve pautar a conduta de um servidor” e lembra que ele “ já veio a público exibir cicatrizes para justificar seu baixo rendimento acadêmico e já dançou segurando um guarda-chuva para fazer troça de cidadãos críticos às suas políticas para a área de educação. Também já são bastante conhecidas as suas discussões infantis no Twitter. Mas até para os padrões do bolsonarismo – que estabeleceu novo patamar de insalubridade nas redes sociais – o ministro cruzou a linha vermelha”.
No artigo A guerra cultural a todo vapor – o bolsonarismo amplia o cerco aos artistas brasileiros e elege a classe como inimigo a ser aniquilado – publicado na revista Carta Capital em 11 de dezembro de 2019, assinada por Eduardo Nomura, Jotabê Medeiros e Pedro Alexandre Sanches afirmam que “O ataque diuturno e incansável do bolsonarismo às mais relevantes personalidades da cultura e da arte brasileiras e o enraizamento de seus delirantes e ideológicos acólitos na estrutura do estado compõe um fato inédito no País”.
O jornal Folha de S. Paulo, em editorial intitulado Marcha às trevas, publicado no dia 08 de setembro de 2019 – Governantes desvirtuam o conservadorismo rumo à censura e à ignorância – Faz referência à primeira semana daquele mês “que se mostrou tristemente pródiga em episódios nos quais governantes se valeram do poder do Estado para impor preconceito e intolerância, à custa da liberdade de expressão e da difusão do conhecimento”.
Uma delas foi o ato do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella que determinou o recolhimento de uma publicação em quadrinhos, exposta na Bienal do Livro (realizada entre 30 de agosto a 8 de setembro de 2019), devido a uma imagem de uma história em quadrinhos, Vingadores, a Cruzada das Crianças, no qual aparecem dois rapazes se beijando.
Houve também uma grande repercussão. No dia seguinte, uma liminar impediu a prefeitura de apreender livros no evento. Atendendo a um pedido da Procuradoria Geral da República, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli afirmou que o regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias e que o “reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana, direito a autoestima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo e direito à busca da felicidade”.
Em relação ao argumento do prefeito de que a determinação visava “cumprir a lei e defender a família”, o presidente do STF afirmou que a Constituição não empresta ao substantivo “família” nenhum “significado ortodoxo” e trabalha com a “interpretação não-reducionista”, sem diferenciar casais héteros ou homoafetivos.
Em Porto Alegre, a exposição de charges e cartuns políticos “O riso é risco: desenhos de humor”, com 36 desenhos de 19 artistas, prevista para ser exibida entre os dias 2 a 13 de setembro de 2019, foram retirados da Câmara de Vereadores, a mando da presidente da Casa, Mônica Leal (PP), com o argumento de que eram ofensivos ao presidente da República.
Em São Paulo, no dia 3 de setembro de 2019, o governador do Estado, João Dória, mandou recolher uma apostila de ciência usada por alunos do 8º ano da rede estadual. As apostilas, esta e outras, servem de material de apoio escolar e são distribuídas pela Secretaria Estadual de Educação, dentro do programa “São Paulo faz escola”. Criado em 2008, o programa é responsável pela implantação do Currículo Oficial do Estado de São Paulo. A determinação do governador alegava que conteria propaganda de “ideologia de gênero”.
Uma leitura da apostila mostra que o objetivo da censura foi mais em satisfazer o eleitorado conservador, de direita e extrema-direita do que uma discussão séria sobre o seu conteúdo. A apostila trata de uma descrição sucinta das diferenças entre sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual e orientações sobre doenças sexualmente transmissíveis, ou seja, conforme os conteúdos são: os tipos de reprodução; Estratégias reprodutiva; Reprodução sexuada e assexuada; Fertilização externa e interna; Eeprodução humana e saúde reprodutiva; Puberdade – mudanças físicas, emocionais e hormonais no amadurecimento sexual de adolescentes; Anatomia interna e externa do sistema reprodutor e humano; Ciclo menstrual; Doenças sexualmente transmissíveis – prevenção e tratamento; Métodos anticoncepcionais e gravidez na adolescência.
No artigo Os pilares da estupidez, publicado pouco depois das eleições de 2014, o jornalista Mauro Santayanna afirmou que estava em curso nas redes sociais, (há anos), uma insidiosa campanha de agressão à democracia e ataques às instituições e “parece que os pólos da razão foram trocados, e que vivemos sob a égide da insânia e da vilania”.
O que mudou desde então? A ampliação da disseminação de fake news, o crescimento do cerco ao conhecimento, à cultura, aos artistas etc. Como explicar que um negro no comando da fundação Palmares tenha negado o racismo e se referir aos benefícios da escravidão e ainda afrontar o que chamou de “negrada militante”? Que um presidente da Funarte tenha afirmado que o rock ativa as drogas, o sexo e a indústria do aborto e ainda acusou os Beatles de serem comunistas…Como indaga Fernanda Torres em artigo para a Folha de S. Paulo (9/2/2020) “Que caminhos nos levaram a esse elenco de Napoleões de hospício? À abstinência da Damares, às cruzadas de Araújo, ao desenvolvimentismo predatório de Salles, e à incompetência alarmante de Wientraub? As causas são tantas, ensina Tostói, que é impossível à ciência dos homens compreendê-las. Resta o pasmo”.
No artigo Grotescos no poder André Vargas (IstoÉ 11/12/2019) afirma que “desde o princípio do governo de Jair Bolsonaro, os brasileiros – e o mundo – assistem a um aparelhamento ideológico descontrolado tanto do núcleo como nas periferias do poder. A República foi tomada por algumas figuras lunáticas que se dedicam a pregações apocalípticas e insanas (…) toda semana, os noticiários e as redes sociais são inundadas por diferentes declarações, iniciativas e críticas desrespeitosas contra negros, mulheres, indígenas, gays, estudantes, pesquisadores, ambientalistas e artistas. As afirmações mais pesadas costumam recair sobre o conjunto de brasileiros pobres e indefesos”.
Outro aspecto que revela profunda ignorância é considerar os governos do PT como comunistas. Como lembra Santayanna, é uma insensatez taxar de comunista um governo em que os bancos principalmente os privados lucraram bilhões, onde dezenas de empresas multinacionais se instalaram e mandavam, sem restrições, bilhões de dólares e euros em remessa de lucro para o exterior… Para ele “ignorantes, permanentemente alimentados por mitos e mentiras espatafúrdias, o anticomunismo (e os anticomunistas de teclado, como diz) são desinformados, ignorantes e sobretudo hipócritas. E conclui afirmando que “precisamos derrubar os pilares da estupidez, erguidos com o barro pisado, diuturnamente, pelas patas do ódio e da ignorância, antes que eles ameacem a estabilidade e a sobrevivência da nação, e da democracia.
A apologia da ignorância tem consequências e riscos para a democracia e assim, defendê-la da estupidez e má-fé é um dever, é mais do que nunca, também uma necessidade. Como diz o ditado, quem cala, consente.
Referências
Rondônia e o laboratório do conservadorismo
Currículo do Estado de São Paulo – Ciências da Natureza
Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Homero de Oliveira Costa
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