A sociedade sob vigilância Artigos

sexta-feira, 25 outubro 2019
(Foto: Art Crimes/Flicr/Creative Commons)

Artigo discute decretos recentemente editados pelo governo federal, que regulam o uso de dados dos cidadãos pela administração pública federal

(Homero Costa)

“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”. George Orwell, 1984

No dia 9 de outubro de 2019 foram editados dois decretos: o 10.046 e 10.047/2019 que terão impactos significativos na privacidade dos cidadãos. Os decretos estabelecem a política de compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal e também institui o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados. Ele é dirigido a todas as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, além dos demais Poderes da União.

A edição dos Decretos passou quase despercebida e não houve qualquer discussão, dentro ou fora do Congresso Nacional. O que estava em vigor era a Lei Geral de Proteção de Dados, que havia sido apresentada em 2010 no Congresso Nacional e que só foi sancionada no dia 14 de agosto de 2018 por Michel Temer, portanto, depois de 8 anos.  Os decretos aprovados agora regulam a coleta e o tratamento de dados e deverão entrar em vigor em agosto de 2020. Têm como objetivo “garantir direitos fundamentais de liberdade e de privacidade”.

Inicialmente, a base será composta de dados biográficos que já constam no cadastro do CPF, como nome, data de nascimento, filiação, sexo e naturalidade. Depois, serão acrescidos continuamente outros dados, fornecidos por órgãos públicos.

Estes serviços vão criar uma base de dados, desde o que chamam de atributos biográficos (dados relativos aos indivíduos como nome, data de nascimento, filiação, naturalidade, nacionalidade, sexo, estado civil, grupo familiar, endereço e vínculos empregatícios etc.); atributos biométricos, ou seja, “as características biológicas e comportamentais mensuráveis da pessoa natural (…) que podem ser coletadas para reconhecimento automatizado, tais como: a palma da mão; as digitais dos dedos; a retina ou a íris dos olhos; o formato da face; a voz e a maneira de andar e atributos genéticos (características hereditárias da pessoa natural, obtidas pela análise de ácidos nucleicos (DNA) ou por outras análises científicas”.

Além disso, trazem informações identificadoras como os cadastros de órgãos públicos (CPF, CNPJ, PIS, NIS, número de título de eleitor etc.).

Trata-se, como se percebe, da formação de uma mega base de dados. Como diz Tatiana Dias, no artigo Aqui estão todas as suas informações que o governo vai reunir numa mega base de vigilância publicado no The Intecept Brasil, no dia 15 de outubro de 2019: “Na prática, a canetada do presidente criou uma ferramenta de vigilância estatal imensa, que vai bem além de informações pessoais básicas como CPF, filiação, data de nascimento. Ela inclui também todas as informações laborais e biométricas”.

(Foto: Acervo do autor)

A editora Boitempo publicou em 2018 uma coletânea intitulada Tecnopolíticas da vigilância – Perspectivas da margem (organizada por Fernanda Bruno, Bruno Cardoso, Marta Kanashiro, Luciana Guilhon e Lucas Melgaço). Por que perspectivas da margem? Para os organizadores “Designamos por perspectivas da margem a situação desde a qual pensamos as tecnopolíticas da vigilância. Pensar a partir da América Latina implica pensar desde a margem, entendida menos como região periférica do que como região liminar: ora dentro, ora fora dos agenciamentos que constituem os grandes vetores da cultura da vigilância do chamado “Norte global” ora em desacordo com a agenda crítica e as pautas de resistência vigentes nesse mesmo Norte”.

O livro foi resultado de pesquisas feito por integrantes da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits), criada em 2009.

A criação da Rede, reunindo pesquisadores de várias instituições foi uma iniciativa importante porque, se de um lado há decretos governamentais como os dois editados em outubro de 2019 no Brasil, há também a “massiva presença de tecnologias de vigilância e monitoramento de dados pessoais (…) que não vem sendo acompanhada, com a mesma intensidade, seja por debates públicos e movimentos sociais, seja por pesquisas acadêmicas e legislação adequada”.

Entre outros aspectos, o livro analisa o desenvolvimento de novas formas de vigilância, como a captação, processamento e armazenamento de dados que levam a novas formas de vigiar (e ser vigiado), com o uso de câmeras, rastreamento de compras, acessos a internet, das redes sociais etc., enfim, uma ampla e sofisticada teia de vigilância que serve não apenas para ofertas e vendas de produtos direcionados a determinados públicos alvos, como a possibilidade de vigilância e controle. E o mais grave: terminam sendo banalizadas, naturalizadas, sem que haja uma resistência organizada por parte dos que são suas vítimas.

Um dos artigos do livro é Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização da informação de Shoshana Zuboff que, como se diz na apresentação “trata da natureza e dos efeitos de quatro práticas derivadas da mediação por computador no capitalismo de vigilância. São elas a de extração e análise de dados, a de estabelecer novas formas de contrato, que permitem um melhor monitoramento, a de personalização e customização e, por fim, a de fazer experimentos contínuos”.

Para Zuboff essas práticas expressam o que ela chama de Big Other, que é uma nova configuração do poder “que prediz e modula comportamentos, impondo desafios às normas democráticas”.

(Foto: Acervo do autor)

Zigmunt Bauman (1925-2017), sociólogo polonês e autor de vasta obra, entre elas Vigilância líquida (Editora Zahar, 2013). Neste livro, entre outros aspectos, ele reflete sobre o significado do que chama de “novas formas de controle para a produção da ordem na modernidade líquida”. O livro é dividido em sete capítulos e entre eles um  que trata da vigilância líquida como pós-pan-óptico e afirma que se a tarefa principal do panóptico tal como formulado por (Jeremy)  Bentham e no qual Michel  Foucault (1926-1984) se baseou  para compreender a ascensão das sociedades modernas,  embora “esteja vivo e bem de saúde” e “armado de músculos” (eletronicamente reforçados e “ciborguiados”) e ainda hoje “tão poderosos que Bentham, ou mesmo Foucault não conseguiria nem tentaria imaginá-lo”, na modernidade líquida, no entanto,  claramente deixou de ser o padrão ou a estratégia mais comumente praticado. Para ele “O pan-óptico foi tirado de seu lugar e confirmado às partes ‘não-administráveis’ da sociedade, como prisões, campos de confinamento, clínica psiquiátricas e outras instituições totais no sentido criado por Goffman”

Em relação ao modelo do panóptico do filósofo e jurista inglês Jeremy Benthan (1748-1832) foi publicado no Brasil em 2008 pela editora Autêntica, o Panóptico, a primeira tradução para o português e no qual ele formula o que ficou conhecido como o projeto do Panóptico. Em relação a Michel Foucault, tem Benthan sua principal referência ao analisar, no capítulo III (o panoptismo) no livro Vigiar e Punir: História da violência nas prisões – publicado na França em 1975 (Editora Gallimard) e no Brasil pela editora Vozes em 1983).

Neste modelo, segundo Bauman, era fundamental disciplinar mantendo uma ameaça constante e real de punição e a estratégia era fazer os súditos acreditarem que em nenhum momento poderiam se esconder do olhar onipresente dos seus superiores e que não era possível nenhum desvio de comportamento, por mais secreto que fosse e se houvesse, não poderia ficar sem punição, ou seja, o poder disciplinar condicionava o comportamento humano por meio de instituições sociais, mas em espaços fechados (escola, quartel, prisão etc.) a serviço dos interesses dos detentores do poder.

Na sociedade líquida moderna, no entanto, a possibilidade de armazenagem de informações sobre as pessoas cresceu exponencialmente e passaram a fazer parte de gigantescos sistemas de dados que podem ser definidos como verdadeiros “superpanópticos”, que é diferente do modelo anterior (circunscrito a espaços fechados). Agora há vigilância irrestrita, de câmaras em espaços públicos, sistemas sofisticados de vídeo-vigilância, mecanismos de rastreamento de dados na Internet e em redes de telefones celulares, documentos biométricos de identificação, entre muitos exemplos de tecnologias que possibilitam a coleta, armazenamento, cruzamento de informações etc.

É possível afirmar que há hoje uma cultura da vigilância, no sentido utilizado por David Lyon em Cultura da vigilância: envolvimento exposição e ética na modernidade digital no livro Tecnopolíticas da vigilância (p.151-180) que é facilitada pela hiperexposição das pessoas especialmente nas redes sociais, quando fornecem espontaneamente seus dados, preferências etc., ou seja, não bastassem as iniciativas governamentais que visam dispor de mais dados e, portanto maior possibilidade de controle, os vigiados também fornecem diária e voluntariamente seus dados que são armazenados e que servem de instrumentos de vigilância deles mesmos e assim, as barreiras físicas, antes limitadas (espaços fechados) que eram as fronteiras do panóptico se ampliam.

Um dos grandes desafios hoje em relação ao desenvolvimento dessas novas formas de vigilância (e controle) é o que fazer. Em relação à internet e o direito à privacidade, no livro Big Tech – a ascensão dos dados e a morte da política (Editora Ubu, 2018), Evgeny Morozov questiona as formas pelas quais os dados pessoais são utilizados, não apenas pelos governos, mas especialmente por empresas privadas que invadem a privacidade e ameaçam à própria democracia.

Nesse sentido, há iniciativas importantes como a Coalizão Dinâmica para Direitos e Princípios da Internet (Internet Rights and Principles Dynamic Coalition – IRPC) que é uma “rede internacional aberta de pessoas e organizações que trabalham para defender os direitos humanos no ambiente online e em todo o âmbito da elaboração de políticas para a internet”. A rede elaborou e divulgou  uma Carta de Direitos Humanos e Princípios para a Internet. São dez direitos e princípios e entre eles, sobre a privacidade e proteção de dados. Diz: “Todos os indivíduos têm o direito à privacidade online, incluindo o direito de não ser vigiado, o direito de usar criptografia e o direito ao anonimato online. Todos os indivíduos têm também o direito à proteção de dados, incluindo o controle sobre coleta, retenção, tratamento, eliminação e divulgação dedados pessoais”.

(Foto: Acervo do autor)

Segundo o documento a “Internet oferece oportunidades sem precedentes para a efetivação dos direitos humanos, e desempenha um papel cada vez mais importante nas nossas vidas (…). Nesse sentido “é essencial que todos os agentes, tanto públicos como privados, respeitem e protejam os direitos humanos na Internet. “Também devem ser tomadas medidas para garantir que a Internet funcione e evolua de modo que os direitos humanos sejam defendidos”.

A questão é: como garantir o respeito e o direito à privacidade e não apenas na internet, como o uso que se pode fazer com os mega dados que o governo possibilita com a aprovação dos dois decretos que criaram o Cadastro Base do Cidadão? Como saber com que fins serão usados os dados das pessoas? Michel Foucault em Vigiar e Punir(…) se refere a uma rede complexa de relações de poder que controla os indivíduos por meio da vigilância e que depende da sua invisibilidade (e da visibilidade dos sujeitos) que devem saber que estão sendo vigiados e nesse sentido a vigilância substitui a violência, mas governos autoritários podem não apenas vigiar as pessoas, como se pretende, mas também punir os dissidentes, e com violência, se for preciso.

Referências

Lavits

Vigiar e punir – Michel Foucault

Os 10 Direitos e Princípios da internet da Coalizão IRP 

Leia outro artigo do mesmo autor:

A ciência sob ataque e o avanço da ignorância

Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Homero de Oliveira Costa

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