A recusa da política Artigos

domingo, 10 dezembro 2017

A política não pode ser reduzida à convenções burocráticas, muito menos ao partidarismo e/ou a realização de eleições periódicas.

No dia 19 de outubro de 2017 foi divulgado o resultado de uma pesquisa feita pelo Ipsos. Foram entrevistadas 1,2 mil pessoas, em 72 municípios, entre os dias 1 e 14 de julho de 2017. De acordo com a pesquisa, 93% dos entrevistados não confiam nos políticos, 90% não confiam no presidente da República e 86% disseram concordar, parcialmente ou totalmente, com a frase: “Os partidos e políticos tradicionais não se preocupam com pessoas como eu”. Entre as nove instituições avaliadas, apenas as Forças Armadas e a Polícia Federal obtiveram índices de confiança maior do que o de desconfiança. Em relação às demais – Polícia Militar, Ministério Público, Supremo Tribunal Federal, Justiça, Congresso, presidente da República e políticos em geral – mais de 50% dos entrevistados disseram não confiar.  O que a pesquisa mostrou – assim como outras feitas anteriormente – foi a confirmação de uma desconfiança generalizada nas instituições.

As revelações – com poucas variações – são as mesmas constatadas em várias pesquisas pelo menos desde 1995, como as do Instituto Latinobarômetro que faz pesquisas anuais em quase todos os países da América Latina. Da mesma forma, o Eurobarômetro, que faz pesquisas sistemáticas nos países europeus. A constatação é de que existe uma profunda descrença e desencanto em relação aos partidos,  políticos e instituições.

Trata-se de uma questão mais ampla, uma crise do próprio modelo de representação. O desencanto com a política é expressão de um hiato entre sociedade e Estado, da não participação ativa dos cidadãos, de sua inserção no espaço público que se reduz apenas ao direito de votar periodicamente, ou seja, a inexistência de efetivos canais de participação.  Dois exemplos recentes: As eleições presidenciais no Chile realizada no dia 19 de outubro de 2017 e as eleições na França de maio e junho de 2017. No Chile houve uma abstenção de quase 50% do eleitorado (o país não tem voto obrigatório desde 2012). Na França, nas eleições presidenciais de maio de 2017, Emmanuel Macron foi eleito com 66,10% dos votos, contra 33,90% da candidata de extrema direita Marine Le Pen. No entanto, a abstenção foi de 25,44%, a mais alta desde 1969 e os votos brancos e nulos registraram um recorde de 11,47%. Nas eleições parlamentares de junho de 2017, foi a menor registrada desde 1958 (51,2%, 7% menor do que foi registrado na eleição de 2012).

No Brasil, nas eleições de outubro de 2016 uma pesquisa divulgada pelo Ibope revelou a avaliação desfavorável dos governantes nas três esferas – municipal estadual e federal – e um amplo desencanto com os políticos.  Marcio Pochmann  num artigo publicado 16/10/2016, afirma que “A desatenção das autoridades responsáveis pela condução do sistema político nacional ao movimento das urnas revela muito mais o apego à aparência de normalidade eleitoral do que à essência da crise maior de legitimidade do atual regime de democracia eleitoral (…) o que se percebeu foi o comportamento do eleitor ser lenta e gradualmente alterado, cada vez mais questionador do sistema político nacional.  Isso já era visível no decorrer das eleições presidenciais (em 1989, por exemplo, a somatória de abstenções e votos nulos e em brancos foi de 18,3% e em 2014, 29%) e para ele “a perda de legitimidade do sistema político fica caracterizada pelo fato de – em grande parte das cidades – o prefeito ter sido eleito com menos votos do que a somatória de eleitores ausentes e da votação de nulos e em brancos”.

E em um país sem tradição democrática, como o Brasil, a não participação e/ou a recusa à participação, pode trazer graves conseqüências. No artigo “A volta dos que não foram” publicado no jornal Le Monde Diplomatique (ano II, n. 124), Rodrigo Lentz cita um estudo feito pelo Pew Research Center, “Globally, Broad Support for Representative and Direct Democracy”, e um estudo sobre atitudes e comportamentos em apoio à democracia no mundo o qual revela que apenas 8% dos brasileiros apóiam a democracia representativa, e 38% consideram uma alternativa militar como positiva para o sistema político e 62% apóiam saídas não democráticas. A antipolítica e a rejeição  levam à passividade e abre a possibilidade de aventureiros se aproveitarem reforçando o discurso contra a política e os  políticos(embora sendo eles mesmos políticos e alguns defendendo saídas autoritárias…em nome do povo).

A participação eleitoral é apenas uma das formas de participação e é central nas democracias representativas e deveriam revelar a legitimidade do regime democrático representativo, mas não é o que ocorre, especialmente no Brasil no qual as disputas eleitorais são desiguais e nas quais há o primado do poder econômico.

A questão que se coloca é: com o ceticismo e a recusa à participação, a política ainda faz sentido? Hannah Arendt, filósofa alemã, no livro A dignidade da política (Relume Dumará, 1993) que reúne um conjunto de ensaios e conferências entre 1946 e 1975, em um dos ensaios, indaga justamente se tem a política ainda algum sentido. Para ela “há uma resposta tão simples e conclusiva em si mesma que se poderia pensar que as outras respostas são totalmente desnecessárias. A resposta é a seguinte: o sentido da política é a liberdade”. Ela é uma dimensão essencial da condição humana, a esfera política dignifica a condição humana e não pode ser reduzida a política partidária e/ou a realização de eleições periódicas. Um dos aspectos importantes é que o sistema representativo – já criticado por Rousseau no século XVIII – traz consigo a concepção de que é possível prescindir da participação popular na gestão da coisa pública, e assim os cidadãos não são considerados capazes, devendo a sua gestão ser confiada a especialistas. Como diz André Duarte no artigo Hannah Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta da política “Nesse contexto, a atividade política tende a se reduzir à administração dos interesses privados, desaparecendo o próprio espaço público em seu caráter plural e comum”.

Ao analisar os regimes totalitários no livro Origens do totalitarismo (1951) Hannah Arendt mostra como houve a destruição do espaço público, uma vez que não havia uma condição essencial para a sua existência: a liberdade. Os regimes totalitários só se tornaram possíveis porque indivíduos estavam isolados, atomizados e despreocupados com as questões políticas e mobilizados apenas para legitimar esses regimes, sem qualquer possibilidade de participação efetiva. Assim, a não-participação e  a recusa da política pavimenta o caminho de ditaduras. Ela vai chamar de “massas” os indiferentes ao mundo público e, portanto sem assumirem responsabilidades inerentes à participação na esfera pública.

O diagnóstico de Hannah Arendt é o de que a modernidade configura um período histórico de obscurecimento de políticas democráticas, no qual se a política não foi reduzida ao plano da violência, como no caso dos fenômenos totalitários, foi reduzida ao plano da administração burocrática, em defesa dos interesses de setores minoritários da sociedade.  Mas como diz André Duarte no referido artigo ela “não se limitou a uma concepção negativa das possibilidades políticas modernas (…), pois vislumbrou nos modernos eventos revolucionários a possibilidade de uma revitalização da política em suas determinações democráticas originárias, dado que aí se restabeleceram os laços entre a ação política, a liberdade e a felicidade pública”.

Em um contexto de apatia e/ou impotência política no qual a maioria da população não exerce qualquer influência política, no qual o povo é excluído da cena pública, a política torna-se privilégio de poucos. Nesse sentido, como considerar governos democráticos apenas porque foram eleitos? Para Hannah Arendt  o que se chama  de democracia no século XX seria, na verdade, uma oligarquia em que o poder se concentra nas mãos de poucos. Enquanto instituições, os partidos não poderiam ser vistos como órgãos efetivamente populares, pois, na prática, não possibilita uma ampla participação em suas instâncias deliberativas. O que se constata hoje é uma crise de representação política, do sistema  representativo e da democracia parlamentar. Da forma como está, não pode ser a única alternativa política viável no mundo contemporâneo. Hannah Arendt ao pensar sobre o vínculo indissociável entre liberdade, ação coletiva e felicidade pública, afirma que não se pode apenas se submeter ao sistema de partidos e da política representativa, e nem simplesmente recusar os ganhos da democracia parlamentar, mas encontrar alternativas para ampliar a participação e como diz André Duarte “daí a necessidade da invenção de novas formas de exercício da política e de novas formas de pensamento, capazes de recapturar e retraduzir em um instante a origem democrática da política”.

Hoje, o desprezo pelo político, com discursos dos pretensos representantes associados à mentira e à ocultação, faz-se necessário (re) constituir a dignidade da política que só é possível se houver liberdade, e, portanto com governos legítimos e democráticos.

Leia o artigo O Presidencialismo de decomposição e a crise das esquerdas, do mesmo autor

Homero de Oliveira Costa

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