A política do ódio Artigos

sexta-feira, 6 março 2020
(Imagem: Pixabay)

É necessário combater o ódio e suas expressões, como o racismo e a discriminação e também agir contra as violações dos Direitos Humanos

(Homero Costa)

O livro O discurso do ódio (Editora Difel, 2007) de André Gluckmann é uma reflexão sobre o ódio e seu papel na sociedade. A tese defendida, resumidamente é que “o ódio existe tanto na escala microscópica dos indivíduos como no cerne de coletividades gigantescas. A paixão por agredir e aniquilar não se deixa iludir pelas magias das palavras”. Para ele, as razões atribuídas ao ódio “nada mais são do que circunstâncias favoráveis, simples ocasiões, raramente ausentes, que libera a vontade de destruir simplesmente por destruir”.

Há muitas obras que analisam o papel do ódio, como o livro O ódio à democracia, do filósofo francês Jacques Rancière (La Fabrique éditions 2005 e no Brasil publicado pela Editorial Boitempo em 2014). O livro é uma reflexão sobre a democracia e o ódio a ela. Ele analisa as contradições de Estados democráticos, os impasses entre a democracia como princípio e às respectivas práticas sociais, que a contradizem.

(Acervo do autor)

É um livro que apesar de curto (122 páginas), é denso e propõe uma reflexão que se estrutura em torno de três idéias básicas: 1) A democracia tem um significado revolucionário ao qual é necessário retornar; 2) As sociedades autoproclamadas democráticas na realidade são oligarquias com forma representativa (eleições periódicas etc.); 3) Para analisar o ódio à democracia, é preciso compreender seu contexto e, para ele, hoje tem um sentido novo que é preciso entender corretamente para combater, que é justamente a ideia de que a democracia é um sistema representativo de caráter oligárquico (ele se refere a uma concepção do jovem Marx segundo o qual as leis e as instituições da democracia formal são aparências por trás das quais e os instrumentos com os quais se exerce o poder da classe burguesa).

Mesmo com os processos eleitorais “livres”, tem no poder e parlamentos, oligarquias que se revezam e assim se contrapõe aos princípios e práticas de um regime político de equidade e liberdade. Nesse sentido, o ódio resulta de uma sociedade na qual de pessoas não são e nem se percebem iguais. Para Ranciére há um movimento crescente disposto a destruir as instituições para preservar os privilégios de uma minoria que se apropria do poder.

Em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, publicado em 01/07/2019 o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que “Em todo o mundo, o ódio avança. Uma ameaçadora onda de intolerância e violência baseada no ódio está atingindo seguidores de muitas religiões em todo o planeta. São judeus assassinados em sinagogas e seus túmulos desfigurados com suásticas; muçulmanos executados dentro de mesquitas e seus locais religiosos vandalizados; cristãos assassinados em oração e suas igrejas destruídas. O ódio está se movendo tanto na corrente das democracias liberais como nos regimes autoritários e colocando uma sombra sobre a nossa humanidade em comum”.

Em 2017 foi criado na Europa o Movimento Contra o Discurso do Ódio com a participação de centenas de entidades, entre elas, a anistia internacional.  Evidente que cada país conta com sua própria legislação, baseadas em uma série de elementos culturais e históricos. Na Espanha está sendo desenvolvido o Projeto Online Contra a Xenofobia e a Intolerância organizado pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha e pela organização United Explanations, que acompanha as opiniões em notícias sobre imigração, com o objetivo de reduzir os níveis de aceitação do discurso intolerante.

Em junho de 2019, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou o que chamou de Um Plano de Ação sobre o Discurso do Ódio, entendido como “Qualquer tipo de comunicação falada, escrita ou comportamento que ataca ou usa linguagem pejorativa ou discriminatória com referência a uma pessoa ou grupo com base em quem eles são. Em outras palavras, sua religião, etnia, nacionalidade raça, cor, descendência, sexo ou outro fator de identidade”. Resumidamente, todas as formas de expressão que propagam, incitam, promovem ou justificam o ódio racial, a xenofobia, a homofobia, o antissemitismo e outras formas de ódio baseadas na intolerância.

O Movimento contra o discurso de ódio tem como principal objetivo o combate ao discurso de ódio e à discriminação na sua expressão online, pois como explicita o documento “Com o desenvolvimento das Redes Sociais todos podemos participar no ciberespaço de formas muito diversas, desde o contato permanente com os nossos amigos e o desenvolvimento de novos contactos até a partilha de conteúdos e à exploração da nossa capacidade de nos exprimirmos. Este espaço online dá-nos novas oportunidades tais como aderir com outros a causas em que nos queremos empenhar e que nos preocupam. Mas também podemos igualmente ser vítimas e agentes de abusos e violações dos Direitos Humanos, entre as quais, o discurso de ódio em diversos formatos e o ciberbullying”.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que todos têm direitos iguais, independentemente de classe social, gênero, raça, etnia ou religião. No entanto, tais direitos não são respeitados. No Brasil a Constituição de 1988 estabelece, em seu Art. 3º, inciso IV, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, podendo criminalizar, com privação de liberdade ou multas, atos que firam esses princípios.

No entanto, as taxas relacionadas a crimes de ódio são altas e têm crescido com a escalada de discursos de ódio, racistas, machistas, homofóbicos que ganham propulsão nas redes sociais (e nas ruas) com o avanço do conservadorismo e obscurantismo. No caso do Brasil, no contexto de um governo de extrema-direita, com um presidente que estimula um verdadeiro festival de horrores, com arroubos preconceituosos, de cunho misógino e sexista, com o uso frequente de grosserias, ofensas à imprensa, e desprezo pelas instituições democráticas. O resultado é o aumento do ódio.

Não por acaso são registrados diariamente violências e até homicídios contra pessoas LGBT, feminicídios, assassinatos de jovens negros, crimes de racismo e intolerância religiosa. E não é recente. No livro Dilma Rousseff e o ódio político, do psicanalista Tales Ab’saber(Editora Hedra, 2015) em 12 ensaios, entre outros aspectos, investigam o ódio à política que se desenvolveu especialmente a partir dos governos de Lula e Dilma Rousseff. Mostra a emergência da extrema direita, de uma oposição autoritária marcada pelo ódio, com o apoio da grande mídia hegemônica. Para ele, há um ódio político  que se sustenta em uma “distorção efetiva da capacidade de pensar”, que teria base na “necessidade de saturar a realidade com desejos que não suportam frustração, bem como no impacto corrosivo dos mecanismos psíquicos ligados ao ódio sobre o próprio pensamento”.

No artigo A produção do inimigo e a insistência do Brasil violento e de exceção publicado no livro O ódio como política (org. Esther Solano, editora Boitempo, 2018) Edson Teles se refere a gestão da segurança pública que, segundo ele, há décadas aposta na militarização da vida e na estratégia da guerra e cujo resultado tem sido o aumento da violência e da criação de territórios nos quais o Estado aterroriza suas populações (favelas, periferias pobres, ocupações de movimentos de lutas por moradia etc). Nesses locais o estado, sob a justificativa de restabelecer a ordem, aciona medidas de exceção a partir de mecanismos jurídicos.

O ódio contra minorias, a discriminação por gênero, orientação sexual, religião, origem ou condição social etc., são fundamentados na intolerância, no preconceito e um dos seus desdobramentos é a perseguição, insultos e privação de direitos humanos a diversos indivíduos e grupos como os negros, os LGBTs e as mulheres. O discurso do ódio opera a partir da discriminação com o objetivo de restringir de direitos, usando até mesmo a violência e a aniquilação das vítimas. Como diz o secretario da ONU “Na medida em que as labaredas do ódio se espalham, as mídias sociais são exploradas pela intolerância. Movimentos neonazistas e de supremacia branca estão crescendo. E a retórica inflamada está sendo usada para benefício político”.

Uma das iniciativas importantes no país é a da Bibli-ASPA, com sede em São Paulo. Trata-se de “um centro de pesquisa e cultura criado com o objetivo de promover a reflexão crítica por meio da pesquisa, produção e difusão sobre os povos árabes, africanos e sul-americanos” e “congrega pesquisadores e acadêmicos de mais de 40 países e desenvolve cursos de língua, cultura, literatura, história, arqueologia, caligrafia etc., exposições, festival de arte, publicação de livros, pesquisas, consultoria para projetos especiais, mostras de cinema e teatro, bibliotecas especializadas e saraus, entre outras ações”

Um dos seus projetos é o do combate à xenofobia, intolerância e racismo com o objetivo de promover conscientização por meio de palestras, debates, rodas de conversa, seminários, publicações, exposições e ações culturais. O centro pretende ainda mostrar o patrimônio intelectual e cultural dos refugiados e como esse arcabouço beneficia o Brasil, renovando as artes brasileiras e tornando o País mais multilíngue e diverso; além de organizar reuniões e ações a favor dessa integração, com destaque ao Movimento em Prol de Imigrantes e Refugiados, fundado na Bibli-ASPA.

Nesse sentido, é de fundamental importância combater o ódio e suas expressões, como o racismo e a discriminação e não apenas na sua expressão online, mas também reconhecer e agir contra as violações dos Direitos Humanos e se solidarizar com as suas vítimas. E a exemplo do que tem ocorrido em alguns países da Europa, criar um amplo movimento contra o ódio e seu discurso, pois como disse o secretário da ONU, ele é um ataque contra a tolerância, a inclusão, a diversidade e a essência de normas e princípios de direitos humanos e democráticos.

Referências

Bibliaspa

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A escalada da desigualdade no Brasil

Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Homero de Oliveira Costa

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