Especialistas alertam que o decreto representa graves violações à ordem constitucional, mais embasado na espetacularização midiática que em dados concretos. Exemplos anteriores mostram o insucesso de ações semelhantes no combate à violência urbana
Não há dúvidas quanto à gravidade da segurança pública no Rio e que não é de hoje. Se o chamado crime organizado se espalhou como por metástase, como disse o presidente da República para justificar o decreto de intervenção militar, especialistas tem mostrado o envolvimento de agentes do próprio Estado no crime organizado. Se o objetivo for mesmo o de resolver esses problemas, teria então de começar com amplas e profundas mudanças, como a de melhorar as indignas condições de trabalho que são submetidos os policiais militares, investigar como as drogas chegam aos traficantes e como são distribuídas, combater as milícias etc. porque um dos grandes problemas é a participação de pessoas que deveriam combater o crime, mas que se associam a ele, especialmente quanto ao tráfico de armas e drogas.
Quanto ao decreto, foi justificado visando “pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública” no Estado do Rio Janeiro, especificamente na área de segurança pública. No entanto, muitos especialistas têm alertado que o decreto pode representar graves violações à ordem constitucional e aos direitos humanos. É o caso da Procuradoria-Geral da República que emitiu uma nota técnica no dia 20 de fevereiro de 2018, na qual afirma que o decreto “ressente-se de vícios que, se não sanados, podem representar graves violações à ordem constitucional e, sobretudo, aos direitos humanos”. Segundo a nota: “A intervenção não pode ser realizada à margem dos direitos fundamentais. Ao contrário, somente será constitucional se for implementada para a garantia dos direitos fundamentais, inclusive à segurança pública, ao devido processo legal, à ampla defesa, à inafastabilidade da jurisdição, etc.”
A Associação Juízes para a Democracia também publicou uma nota criticando o decreto, afirmando que a medida “inaugura mais um episódio da ruptura democrática parlamentar iniciada em 2016. Pelo referido decreto presidencial, um general do Exército brasileiro passará a comandar ‘paralelamente’ o governo do Estado do Rio de Janeiro na área da ‘segurança pública'”.
Para a associação, o decreto encontra-se “eivado de inconstitucionalidades e não apenas pelo desatendimento da prévia oitiva do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional, conforme determinam os artigos 90 e 91 da Constituição Cidadã (…) a intervenção não se fundamenta nas hipóteses previstas no artigo 34 da Constituição da República, pois dentre as condições autorizativas de intervenção federal não consta a expressão ‘segurança pública’, de imprecisão conceitual e de inspiração autoritária” e que “A natureza militar da intervenção, mal disfarçada no parágrafo único do art. 2º do decreto, além de inconstitucional, remete aos piores períodos da História brasileira, afrontado a democracia e o Estado de Direito”.
O documento defende a imediata suspensão do Decreto inconstitucional e que “os membros do Poder Judiciário realizem uma profunda reflexão neste momento em que, mais uma vez, o sistema de justiça não está vigilante quanto ao respeito ao Estado Democrático de Direito, como tantas vezes aconteceu em diversos períodos da história da República Federativa do Brasil”.
Ao que tudo indica, o decreto parece estar mais associado a mascarar o fracasso do governo em conseguir a aprovação da reforma da Previdência (e outras) no Congresso do que efetivamente combater a criminalidade, ou seja, pode ser uma estratégia para desviar o foco das pautas (conservadoras) que tramitam no Congresso de um governo com baixíssimos índices de aprovação e altas taxas de rejeição (que superam os 90%) e que com uma (suposta) aprovação de segmentos da população em relação à intervenção, possa recolocar Michel Temer no jogo eleitoral (caso haja eleição).
A pergunta principal é: ocupação militar vai resolver o problema da criminalidade? As experiências anteriores indicam que não. O Exército ocupou a favela da Maré por um ano e qual foi o saldo? Quando saiu, voltou tudo que era antes e com muitas denúncias de arbitrariedades. As Forças Armadas, como se sabe, são tropas de segurança à Nação – para isso são treinadas – mas não são preparadas para a segurança pública.
Em relação às justificativas do decreto, não havia indicadores de uma situação fora de controle. Segundo a diretora presidente do Instituto de Segurança do Rio (ISP), Joana Monteiro, em entrevista ao jornal o Estado de S. Paulo, os dados de segurança mostram que não houve uma onda de violência atípica no carnaval de 2018. Segundo ela, foram registradas 5.865 ocorrências policiais no total no Rio, entre os dias 9 e 14 de fevereiro, enquanto no carnaval de 2017, foram 5.773 (com a polícia em greve). Em 2016, 9.016 ocorrências foram registradas e, em 2015, 9.062. Portanto, durante o Carnaval deste ano não houve o propalado surto de violência. Pelo contrário: dos 27 indicadores de violência, 16 caíram em relação ao Carnaval de 2017, como homicídios (14,81%) e roubos (9,85%). O general Braga Netto, comandante militar do Leste e que agora responde pela Segurança Pública no Estado Rio, em entrevista à imprensa afirmou que a situação não é tão grave como parece e que “há muita mídia”.
Nesse sentido, um aspecto importante diz respeito justamente à mídia, em especial da Rede Globo, que apoiou a intervenção e durante o carnaval, com sua cobertura, ajudou a criar o clima para que isso pudesse ocorrer. Como Luis Nassif chamou a atenção no artigo “O Xadrez da segunda etapa do golpe”, além de salientar a falta legalidade (“a idéia de intervenção no Rio é democrática porque segue os preceitos da Constituição é tão falsa quanto à da legalidade do impeachment”), salienta o papel da Globo. Para ele, Temer é figura menor: “Assim como no impeachment, sua adesão ao golpe foi estimulada diuturnamente pela cobertura de carnaval da Globo, em tom francamente alarmista. Em cima desse quadro, um grupo de assessores tratou de convencê-lo a endossar o golpe.”
Para Nassif: “Trata-se, de um novo golpe, com papel central das Organizações Globo que “carregou no noticiário, criou um quadro de escândalo, deu ênfase a violências urbanas deploráveis, mas antigas, visando criar o clima de pavor. “Da mesma maneira como cobriu arrastões armados no governo de Leonel Brizola”.
A questão da criminalidade e da violência é complexa e para enfrentá-las são necessárias muitas mais coisas do que a presença nas ruas de tanques e militares. No caso da criminalidade, exige desde investigação – e não pirotecnia midiática – atuação nas fronteiras e não apenas no estado do Rio, uma vez que as armas e drogas chegam a todo país. E o que o governo tem feito nesse sentido?
É necessário fazer reformas mais profundas no aparelho de Estado, investimentos sociais, de infra-estrutura etc., mas como esse governo, tanto o do Rio como o governo federal, vão fazer essas reformas? Como por exemplo, reformar o modelo policial ou a “refundação das policias” como defendido por especialistas? Quando nos referimos ao chamado crime organizado nas favelas, as quadrilhas que a dominam etc., devemos indagar: Quem são os arregimentados? Em geral jovens pobres, desempregados, sem acesso a cultura, lazer, educação e assim se tornam presas fáceis e que, em geral, podem ganhar num dia o que os seus pais ganham durante um mês.
Então, fundamentalmente, não se trata de acabar e muito menos de enfrentar os verdadeiros problemas da segurança pública. Para o antropólogo e ex-secretário de Segurança do Rio de Janeiro, Luis Eduardo Soares, no artigo “Intervenção militar no Rio: de juízes a generais”, são três funções a que serve a intervenção, “todas de natureza eminentemente política: 1) Muda-se a narrativa sobre a realidade do Rio, investindo-se na expectativa sebastianista da redenção, que se realizaria, nesse caso, pelas Forças Armadas, em especial o Exército, e pelo governo federal. 2) Atuando-se reativamente na emergência, impedem-se mais uma vez que alcancem a agenda pública temas fundamentais: (a) a política de drogas; (b) a reforma do modelo policial e a refundação das polícias, com a mudança do artigo 144 da Constituição e (3) a repactuação entre o Estado e as comunidades que vivem em territórios vulneráveis, em especial a juventude, de modo a que as instituições policiais deixem de ser parte do problema e se transformem em parte da solução”.
Enfim, um dos desdobramentos possíveis em curto prazo é que a intervenção pode até produzir uma sensação de segurança, mas os problemas estruturais da violência e da criminalidade em geral continuarão existindo. Como diz a nota da Associação dos Juízes para a Democracia: “Caso se continue a atacar as conseqüências e ignorar as causas da violência social, apenas se consagrará a irracionalidade da “ação pela ação”, com o emprego de recursos antidemocráticos por um governo de legitimidade discutível”.
Homero de Oliveira Costa é professor titular (Ciência Política) do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Leia o artigo A janela da infidelidade, do mesmo autor.
Homero de Oliveira Costa
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