O golpe parlamentar de 2016 se insere numa longa tradição de golpes e intervenções militares na política brasileira
O golpe parlamentar em 2016, liderado pelo PMDB, com o indispensável apoio da mídia hegemônica – com a rede Globo à frente e setores do judiciário – não foi, como se sabe, o primeiro golpe que houve no país. Ele se insere numa longa tradição de golpes e intervenções militares na política brasileira, mas desta vez, não houve a necessidade do uso das Forças Armadas. O que houve foi uma nova forma de golpe, o parlamentar. Esta é a análise que faz o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos no livro “A democracia Impedida. O Brasil do século XXI” (Editora FGV, 2017).
Para ele, os golpes militares foram de um período em que as regras democráticas ainda não haviam se naturalizado. Com isso, a substituição de um governo legítimo pela via não eleitoral, como ocorreu em 2016, não se encaixa nas definições clássicas de golpe de Estado. Foi resultado de uma crise política iniciada pela não aceitação por parte dos derrotados do pressuposto das regras do jogo democrático quando Dilma Rousseff venceu as eleições e houve uma imediata reação, questionando a sua legitimidade. Mas há outros aspectos relevantes que são os interesses contrariados das elites econômicas e políticas e sua representação no parlamento.
Segundo Wanderley Guilherme dos Santos golpe parlamentar é a substituição (fraudulenta) de governantes eleitos legitimamente executada por integrantes do parlamento e uma nova forma de “ruptura institucional” que se inscreve nos sistemas democráticos. Mas não é apenas parlamentar: há outras forças sociais e econômicas, fora do Congresso, que foram fundamentais para o êxito do golpe, mas cabendo a ele a condução do processo.
O livro está dividido em seis capítulos: Democracia representativa e golpe constitucional; 1964 e 2016: dois golpes, dois roteiros; De eleições, temores e processos distributivos; A sucessão da oligarquia pela competição eleitoral; Da democracia e seu bastardo: o golpe parlamentar; e A expropriação constitucional do voto.
No capítulo “Democracia representativa e golpe constitucional”, ele analisa o golpe de 2016, salientando suas particularidades, como a de preservar as aparências da constitucionalidade democrática, ou seja, o golpe se articulou e teve êxito dentro das regras democráticas, não se encaixando, portanto nas clássicas definições de golpe de Estado, com a presença de militares, como ocorreram em 1964 no Brasil e em alguns países da América do Sul como a Argentina, o Chile, o Uruguai e o Paraguai.
Portanto, se golpes podem acontecer em qualquer regime democrático, instaurando ditaduras, no caso de golpes parlamentares, como ocorreu no Brasil em 2016, não há, como não houve, a necessidade de uso das forças armadas e nem da instauração de uma ditadura de fato, até porque foi dado pelo parlamento, que continuou a funcionar. E também não foi uma especificidade do Brasil. Antes já havia ocorrido em outros países como em Honduras em junho de 2009, quando houve um golpe militar que depôs o presidente Manuel Zelaya, e foi apoiado pelo Congresso e no Paraguai em 2012 com o impedimento do presidente Fernando Lugo, cujo mandato terminaria em 2013.
Segundo Betty Matamoros, integrante da Frente Nacional de Resistência Popular em Honduras, numa entrevista para o Opera Mundi em 2012, logo após o golpe no Paraguai, o que derrubou o presidente de Honduras em 2009 não só quebrou a ordem constitucional do país como foi “um laboratório para testar novos tipos de golpes de estado na América Latina”.
Para ela, o que ocorreu no Paraguai, assim como a tentativa de golpe contra o presidente equatoriano Rafael Correa, em setembro de 2010, indica que “A direita internacional vem estudando novas modalidades para dar golpes de Estado técnicos, com cara democrática e institucional para poder frear a luta social do povo e os avanços dos governos progressistas na América Latina”. (“Honduras foi laboratório para novo tipo de ‘golpe institucional’ no Paraguai”, por Giorgio Trucchi, do Opera Mundi, publicado em 23/06/2012).
Em relação ao Brasil, foco da análise de Wanderley Guilherme dos Santos, está inserido no que ele chama de “ruptura institucional parlamentar inscrita em democracias representativas”.
E, entre outros aspectos, ele faz um paralelo entre os golpes de 1964 e 2016 (“1964 e 2016: dois golpes, dois roteiros”) e em ambos, a reação conservadora à participação popular, o sucesso na adesão das classes médias, seduzida pela eficaz e seletiva propaganda “contra a corrupção”. Depois, como se sabe, essa mesma classe média que apoiou o golpe não mostrou a mesma indignação contra o governo golpista e as inúmeras e consistentes provas de corrupção, ou seja, o objetivo nunca foi o de combater a corrupção, mas afastar o PT do governo.
No capítulo que trata mais especificamente da crise política (“Da democracia e seu bastardo: o golpe parlamentar”) um dos principais argumentos é que nas democracias representativas, o número de interesses contrariados é potencialmente superior ao número de interesses atendidos e que a instabilidade e não a estabilidade é o estado natural da democracia.
O problema consiste em como lidar com a instabilidade. No Brasil, resultou num golpe parlamentar no qual houve a usurpação do voto popular, com a aparência da legalidade e assim para legitimar o golpe “armou-se uma coalizão de assalto conservador ao poder envolvendo a sabotagem do Legislativo às ações do Executivo” (p.180).
Quando analisa o que chamou de “A expropriação constitucional do voto” argumenta que o julgamento da AP 470 (que trata do chamado “mensalão”) foi o início de um processo, que pela via não eleitoral, culminou no afastamento do PT da presidência da República em agosto de 2016. Para ele, o judiciário, fez do mensalão um julgamento político, com uma concepção segundo a qual a Constituição é que diz o Supremo Tribunal Federal (STF) embora, como se sabe, há interpretações distintas sobre a mesma lei entre os seus 11 ministros.
Mas o que o autor chama à atenção é que um dos desdobramentos e conseqüências de interpretações da Constituição foram condenações, mesmo sem a prova material, com a chamada “teoria do domínio do fato” porque “a bibliografia assim autoriza condenar”… Assim o julgamento da AP 470 para ele foi um “julgamento de exceção” e que a adaptação da teoria do “domínio do fato”, que o então ministro Joaquim Barbosa usou para condenar José Dirceu serviu também como argumento para a decisão da Ministra Rosa Weber afirmando que mandaria José Dirceu para a cadeia, mesmo sem provas, porque “a literatura me permite”.
Para Wanderley Guilherme “qualquer barbaridade (jurídica) será consagrada se contar com maioria específica ou indiferença genérica” (p. 175). E que “na festa de licenciosidade jurídica contemporânea não faltarão os constitucionalistas a redigir doutas interpretações de antigos casos, ou nunca existidos, dando total garantia de lisura à excepcionalidade”.
Uma das diferenças em relação aos clássicos golpes militares é que para o êxito dos golpes parlamentares, é necessário convergência do que ele chamou de “procedimentos e unanimidade narrativa”. A imprensa, tão seletiva quanto setores do judiciário na condenação do governo do PT, ajudaram a reinterpretar a Constituição conforme os interesses golpistas e assim decidiram o que é e o que não é crime de responsabilidade: “Daí a necessidade de se manter satisfeitos os interesses do Judiciário e da imprensa”, que também colabora na consolidação do poder usurpado (p. 183).
O golpe não foi apenas parlamentar, houve a participação fundamental de outros agentes sociais, como a mídia hegemônica e setores do judiciário, porém a iniciativa, condução e colheita dos seus resultados ficaram nas mãos de parcela da elite do Congresso que, a exemplo de seus apoiadores, dentro e fora do Congresso, proferiam discursos contra a corrupção, mas apenas como parte da retórica conservadora manejada contra os desafetos.
O reconstituir os antecedentes do golpe de 2016, mostra como denúncias sistêmicas de corrupção acompanha a política conservadora e reacionária desde a vitória de Getúlio Vargas nas eleições de 1950. Depois de seu suicídio em agosto de 1954, houve uma tentativa de golpe após a vitória de Juscelino Kubitschek na eleição de 1955 e que “voltaria à cena em outra derrota eleitoral” em 2016.
Para ele “o denominador comum entre os golpistas dos anos 1950 e 1960 e os de 2016 é a rejeição ao progresso econômico e social das classes vulneráveis e um repúdio às políticas de redução da desigualdade (…). Sucessivas derrotas levaram a elite econômica do país, embora altamente compensada durante os governos trabalhistas, a associar-se aos setores preconceituosos da classe média no desespero de eleições como recurso para interromper a supremacia eleitoral trabalhista”
O que se observa hoje são os resultados desse processo e o golpe não apenas não resolveu a crise, como contribuiu e contribui para aumentar a instabilidade do sistema político brasileiro, com os seus riscos para a democracia.
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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Homero de Oliveira Costa
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