Denise existe – e resiste (Parte 1) Diversidades

segunda-feira, 16 dezembro 2019
Denise Carvalho no olhar de Alice Andrade.

Um recorte da vida de Denise Carvalho, a única professora negra do Departamento de Comunicação Social da UFRN

Semana passada publicamos um texto de Denise Carvalho, cientista social negra e pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Na coluna desta semana a pesquisadora Alice Andrade traça um perfil dessa sua irmã de ancestralidade, cuja trajetória de vida e acadêmica escancaram as estruturas racistas da sociedade brasileira, mas também trazem à luz as lutas e a resiliência incessantes de tantas intelectuais negras, apontando caminhos de resistência e infundindo esperança. O texto, que pela sua extensão será dividido em duas partes, foi publicado originalmente na segunda edição da revista digital Poticuir, primeira publicação LGBTQIA+ potiguar.

Denise existe – e resiste (Parte 1)

Por Alice Andrade

“Não escrevemos para adormecer os da casa-grande. Escrevemos para acordá-los dos seus sonos injustos”. Esta é uma frase da escritora Conceição Evaristo, referindo-se às escritoras negras, cuja potência ecoa nestas páginas. Isso porque esta não é uma narrativa para tranquilizar. É, ao invés disso, para incomodar os corações daqueles que acreditam na justiça social e cognitiva do mundo, por mais utópica que essas ideias pareçam ser.

A pesquisadora Alice Andrade.

Aqui compartilho a história de uma irmã de ancestralidade, cuja imensidão das vivências não pode ser limitada à materialidade que o papel oferece. Filha única de João e Maria, sua vida, de fato, parece enredo de livro. Mas a história que inicio é real. É uma experiência individual que se coletiviza no sangue e nas peles de muitas mulheres negras brasileiras.

As paredes da casa verde, onde reside, são pintadas de cimento, tinta e história. É lá que reside, há quase 40 anos, Denise Carvalho dos Santos Rodrigues, atualmente a única professora e pesquisadora negra do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DECOM/UFRN).

Sua mãe, professora de História do ensino municipal e estadual, era mulher de nome-profecia: Maria da Fé. Fazendo jus ao substantivo próprio que a batizara, teria uma consistente fé em Deus, na vida e no próprio fruto do seu ventre, trazendo-a à vida e permitindo que se compartilhasse as unicidades de sua existência. Mas o mundo que Maria mostrou à Denise era repleto de tecidos soltos que precisavam ser costurados, muitas vezes – evocando mais uma vez as palavras da Conceição Evaristo – com “fios de ferro”.

A cientista social Denise Carvalho.

Denise descobriu o que era racismo antes mesmo de entender as pessoas. Entre as violências que sofreu devido às suas características físicas, lembra do cabelo. Uma tia a levou para alisá-lo aos cinco anos. Sua mãe, chateada, deu liberdade a Denise para usá-lo naturalmente até resolver fazer o mesmo procedimento novamente, na juventude.

Certa vez, ainda adolescente, ministrou um seminário e a professora convocou Denise e outros estudantes para a frente da sala, acusando-os de terem apresentado mal por não estudarem o texto. Os pais foram avisados e chegaram à escola para fazer uma reclamação formal. Todos os adolescentes assediados pela professora eram negros. Ela foi demitida. “Eu me assumia como negra, mas em muitas situações eu não enxergava o racismo. Da quinta à oitava série eu achava a escola horrível, detestava. A questão do padrão de beleza, as piadinhas…”. Quando criança, os colegas costumavam chamá-la de “flor do brejo”. Até que um dia, no fim da infância, com a coragem digna de uma filha de Dandara, deu um tapa no rosto de um coleguinha racista que a hostilizava na escola.

Conforme foi crescendo, Denise descobriu que a vida era plural, mesmo sendo ela um singular. Seus pais se divorciaram quando tinha três anos. Desde então não tem contato com seu genitor, que mora em Sergipe, tem outra família e não retornou um contato feito há alguns anos. Eram somente mãe e filha desde que tinha dois ou três anos. Ao falar sobre o assunto, com a mesma nebulosidade no olhar e na memória, conta que não lembra ao certo.

Sua mãe vivia para que vivessem – e sobrevivessem. A renda familiar vinha do salário de professora e da fé de Maria. Um dia, ao limpar o tanque que levava água para casa, bateu a cabeça em uma telha e ficou com sequelas cerebrais: dores e variações constantes na pressão. Precisava de medicamentos que nem sempre podia comprar.

Muitas vezes as contas apertavam tanto quanto as dores de cabeça. Porém, em suas possibilidades, Maria da Fé fazia o melhor para a filha e companheira de vida. Houve um período em que tiveram restrições financeiras sérias. Dentre outras dificuldades, a pesquisadora rememora: “Lembro que nossa televisão quebrou e passamos um ano inteiro sem o aparelho, por não termos condições de enviar para o conserto ou de comprar outra”.

Denise Carvalho. Foto de Alice Andrade.

No ensino médio, a jovem estudou no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), na época conhecido como “ETFERN”. Foi lá onde conseguiu uma bolsa para estudar francês. Com alegria, lembra da importância dessa oportunidade, na época – e, infelizmente, ainda – tão incomum para mulheres negras periféricas. Para ela, parecia uma generosidade da vida.

Mesmo assim, começou a faltar às aulas. Mas não pense mal de Denise: você vai entender. A intuição da jovem sempre foi muito forte. Apesar de adorar o curso, sentia que deveria estar em casa, sem fazer nada, mas fazendo tudo: na companhia da mãe que a enchia de plenitude. “Eu não tinha percebido que ela estava mais ‘mole’ nos últimos dias. Anos depois, quando ingressei na graduação, identifiquei em um livro alguns sintomas que ela apresentava e eu não reconhecia como um problema. Cansaço, respiração ofegante, sono em excesso”, diz.

O sentimento de culpa é substituído pelo calor das lembranças positivas. Ela recorda de uma tarde na qual não queria, de forma alguma, sair de casa. Mas avisou à “mainha”, como costumava chamá-la, que caso não fosse à aula, poderia perder o curso de francês. O fio da intuição as ligava. Aquela tarde deveria ser delas.

Naquele dia, a refeição foi especial. Era a comemoração pela compra da televisão nova, dividida em muitas prestações no crediário, para que pudessem compartilhar momentos do dia em frente à tela. Maria da Fé sabia que a filha adorava salada. Alface, tomate e ginga frita para o almoço, seguido por um filme da Sessão da Tarde e risadas. Denise lembra o quão feliz estavam naquele momento. “Quando cheguei no ponto de ônibus, olhei para trás e pensei em voltar. Mas se não fosse, perderia o curso”, lamenta.

A aula rastejou e a tarde parecia infindável. Na volta, um engarrafamento na ponte que liga a zona sul à zona norte de Natal (RN) fez com que a linha de ônibus 77 demorasse duas horas a mais para deixar Denise em casa. Ela só pensava na preocupação que a mãe deveria estar sentindo por sua demora.

Lembranças pessoais de Denise – Foto de Alice Andrade.

Finalmente conseguiu chegar. O peso da intuição tornou a maçaneta mais difícil de abrir naquele dia. Mirou o interior da casa. Maria estava na sala. Em suas mãos, o telefone sem linha, recorte de um momento estático da tentativa fracassada de pedir ajuda. Suas pernas, cansadas e rígidas, sentadas no chão, com todo o enjoo do corpo posto para fora. Estava paralisada pelo AVC que a acometeu enquanto ficou sozinha. Na sala, Denise foi a única testemunha daquele momento de dor. Uma das lembranças mais intensas de sua vida.

A frieza do hospital era contraste com os olhos fixos de Maria da Fé, que derramavam lágrimas, embora não reagisse. O corpo estava deitado onde a alma parecia não mais habitar. Poucos dias depois, Denise perdera, ao mesmo tempo, a companhia e companheira de vida. A fé que Maria carregava em seu nome foi a herança que deixou para a filha, junto com a casa. Mas morar lá, sem sua mãe, não era mais uma opção sustentável.

Aos 17 anos, órfã de mãe por escolha divina e de pai por escolha humana, foi morar na casa da tia, onde residiam outras quatro pessoas. Fernando, seu cachorro, uivava todas as noites desde que se mudara para lá, lembrando Denise da saudade que Maria deixara. Apesar da perda recente, fez a prova do vestibular no fim do ano. Nos paradoxos da vida, a recordação de um dia: a alegria pela aprovação no vestibular, logo amenizada pela tristeza por sua mãe não estar presente para compartilhar daquela felicidade. “Eu gostaria muito que ela estivesse vendo isso”, disse Denise. Nesse momento, com a voz do jornalista ao fundo, anunciando a lista de aprovados pela televisão, todos choraram na sala.

Ela foi aprovada para o curso de Química na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mas não se identificou com a área e pouco tempo depois fez uma prova interna da universidade para cursar Ciências Sociais. Nesse período, trabalhava no Conselho Regional de Química, na área administrativa. Mas tinha outros planos. Queria ser professora de ensino superior. “Ainda fiz um estágio em escola, com crianças, porém percebi que tinha mais aptidão para dar aula a adultos. Era o que eu queria dali para frente”, decidiu. Ao fim da graduação, teve uma cerimônia individualizada de colação de grau, pois ingressara no curso desnivelada, sem uma turma fixa. Enquanto a emotividade transbordava felicidade por essa conquista, a mente, racional, já traçava outros planos.

No local onde morava, sua cama era um colchão no chão. Seu guarda-roupa, uma bolsa. Embora gostasse muito da família que a acolheu, se sentia sufocada por alguma razão. Precisava do próprio espaço. Foi morar sozinha na casa que a mãe deixou e, mesmo assim, as paredes que abrigaram a ela e Maria ainda eram barreiras para seus sonhos. Decidiu fazer um acordo e pedir demissão do emprego. “Essa será a melhor ou a pior decisão da sua vida”, opinou sua chefa, pensando que não seria razoável abandonar um trabalho estável para seguir por caminhos incertos.

Então, três anos depois de ter chegado à casa da tia e pouco tempo depois de morar sozinha, Denise decide ir para São Paulo e trilhar uma trajetória acadêmica bem distante. Como uma refugiada do próprio destino, foi para longe de sua cidade, dos parentes e das próprias lembranças que ainda latejavam. Foi uma oportunidade de ampliar os horizontes de uma menina que desde cedo aprendeu a ser adulta.

Continua na próxima coluna.

Referência:

Segunda edição da revista digital Poticuir

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Leia a coluna anterior: Reflexão sobre a Semana da Consciência Negra, partindo do meu lugar

Antonino Condorelli é Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Antonino Condorelli

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