A diretora do Instituto de Medicina Tropical da UFRN, Selma Jerônimo, alerta para o papel da Ciência como promotora de cidadania, quando se dedica às doenças tropicais
A resolução das doenças tropicais é uma questão de cidadania. Essa é a opinião da primeira professora titular do Departamento de Bioquímica, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Selma Maria Bezerra Jerônimo. A pesquisadora de áreas heterogêneas como pré-eclâmpsia, ontogenia dos glicosaminoglicanos, leishmaniose visceral e hanseníase repete que quando se tem as ferramentas científicas corretas, o importante é fazer a pergunta adequada para se tentar resolver o problema. Tendo morado apenas os oito primeiros anos de sua vida em Serra Negra do Norte, distante 340 quilômetros de Natal (RN), fala rápido, como a maioria dos potiguares do Seridó, mas as vivências fora do Brasil também lhe marcam o sotaque. Pontuando que toda sua formação escolar foi realizada em escolas públicas, revela que seu caminho na Ciência começou pela paixão por História e por evolução, que ela considera como uma “História Biológica”. Acompanhe a entrevista realizada no Instituto de Medicina Tropical da UFRN, do qual Selma Jerônimo é diretora.
Nossa Ciência: Por que sua família saiu de Serra Negra do Norte em 1967?
Selma Jerônimo: Eu acho que foi semelhante a muitas famílias no Brasil. Meu pai era caminhoneiro, teve dificuldades financeiras e tentou buscar uma nova vida na capital. Eu sou a segunda mais velha de uma família grande, com seis filhos. Quando nós saímos no mês de abril, era o período das chuvas e o Rio Espinhara estava cheio. A gente teve que atravessar de canoa para pegar o caminhão do outro lado. Serra Negra fica a 340 quilômetros de Natal e nós levamos dois dias para chegar aqui. O asfalto só cobria pouco mais de 100 quilômetros, de Santa Cruz a Natal. O restante era estrada de barro. Era outro país.
NC: Onde a senhora desenvolveu sua trajetória escolar?
SJ: Toda a minha formação foi em escola pública. Em Serra Negra e em Natal, eu estudei em grupos escolares. O Ginásio (do 6º ao 9ºano do atual Ensino Fundamental) e o Científico (atual Ensino Médio), eu fiz no então Colégio Estadual Winston Churchill. E eu sempre gostei muito de História e de idiomas, apesar de só ter estudado inglês no Ensino Médio. Eu fiz um teste para um programa chamado American Field Service e fui selecionada para fazer intercâmbio no ano seguinte. Passei um ano em Ilinois, nos Estados Unidos (EUA).
NC: Como foi o intercâmbio?
SJ: Foi uma experiência única para mim porque abriu meus olhos com relação à Ciência e com relação ao conhecimento maior. Eu estudei Biologia Experimental e fiz um projeto de avaliação de comportamento animal. O modo de viver americano é interessante porque as pessoas não têm muita dependência, cada um tem que fazer suas próprias coisas. Nós no Brasil, mesmo quem não é muito abastado, temos alguns privilégios e lá se aprende a cumprir tarefas. Foi muito importante observar alguns valores. E alguns deles não eram muito diferentes dos que minha mãe ensinava. Então foi uma confirmação daquilo a que eu já era exposta em minha casa.
NC: Na sua volta, fez vestibular para Biologia…
SJ: Quando eu estudei no Churchill, tinha uma professora de Biologia – a professora Irene – que era fantástica, ela dava aulas práticas muito interessantes no laboratório. Eu me apaixonei por evolução, conheci o pensamento de Charles Darwin e eu gostava muito de História, a evolução é uma História Biológica e eu decidi fazer Biologia. Meu pai ficou muito chateado porque ele queria que eu fizesse Medicina.
NC: Mas a senhora acabou atendendo ao desejo do seu pai?
SJ: Quando eu fiz Biologia, o curso estava começando na UFRN e tinha deficiências importantes e eu tive a sensação de que eu não estava tendo aquilo que eu achei que deveria ter. O curso de Medicina já era um curso consolidado e eu decidi fazer um novo vestibular. E acabou sendo uma coisa super legal porque eu comecei o curso de Medicina quando os professores Helena Nader e Carl Peter Dietrich, da Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo, vieram para a UFRN começar a fazer pesquisa.
NC: Na Medicina, a senhora reencontra a pesquisa?
SJ: Sim. Eles estavam começando um programa de pesquisa e qualificação dos nossos docentes do Departamento de Bioquímica. Como eu já tinha feito Biologia e falava Inglês, fiz teste e fui aprovada para ser monitora na disciplina de Bioquímica. Eu gostava de trabalhar, ia a campo com os professores, me envolvi com as pesquisas e a Helena (Nader) me convenceu a iniciar um projeto de pesquisa, que foi orientado pelo professor Jose Fernandes de Paiva. No transcorrer da minha formação como médica, eu fiz uma espécie de iniciação científica, mas com dois pesquisadores de renome no Brasil. Eu tive sorte de ser exposta e acabei voltando à pesquisa básica.
NC: Mas quando decidiu pela Medicina, talvez seu projeto fosse a clínica…
SJ: Sim, porque não tinha como ter pesquisa. Naquele período, a situação de recursos para a universidade não era fácil. A UFRN começou a ter linhas de pesquisa na década de 1980. Anteriormente, nós fazíamos extensão, no Centro de Ciências da Saúde. Os professores Dietrich e Helena nos auxiliaram a conseguir os primeiros projetos de pesquisa, que foram financiados pela Finep, o que permitiu a aquisição de equipamentos e reagentes. Os equipamentos que existiam tinham sido adquiridos na década de 1960, oriundos da Europa Oriental.
NC: Daí para o Mestrado foi um passo e a própria Helena Nader foi sua orientadora?
Ela achou que eu tinha condição de começar um Mestrado. Nós iniciamos com o estudo de glicosaminoglicanos examinando a ontogênese. Esse foi um modelo que me deu a pós-graduação tanto em nível de Mestrado quanto o Doutorado. Na tese eu usei um sistema um pouco diferente, mas as ferramentas eram parecidas. No Doutorado, a gente procurou entender o papel desses compostos no desenvolvimento do neoplasma.
NC: A senhora começou a estudar doenças tropicais, quando recebeu a bolsa da Fundação Fulbright. O que a atraiu para esse tema?
SJ: Para mim foram diversas variáveis que influenciaram a decisão de começar. Um aspecto importante é que as doenças infecciosas são muito atraentes no sentido de que se nós agirmos no tempo certo, temos o retorno de forma imediata com a resolução do problema. Outro aspecto é que a resolução dessas doenças é uma questão de cidadania. É um modelo de doenças interessante porque com ele se pode entender a resposta imunológica, a resposta de defesa do organismo. Quando eu fiquei na Universidade da Virgínia (UVA/EUA) num projeto buscando antígenos recombinantes com objetivos a longo prazo de ter uma ferramenta para diagnóstico ou para uso em vacinas, eu fui exposta à parte clínica e isso foi importante para eu elaborar um pensamento clínico.
NC: Quando retornou para Natal em 1990, a cidade estava enfrentando uma epidemia de Leishmaniose Visceral e a senhora teve um papel fundamental. Como foi o trabalho?
SJ: Nós usamos ferramentas para diagnóstico, que meu chefe na UVA, o doutor Richard Pearson, me forneceu junto com pipetas e placas de ELISA. Fizemos trabalho de campo sem nenhum recurso, basicamente só com os antígenos que eu tinha produzido lá (EUA). Eu busquei a colaboração com o Hemonorte porque eles tinham leitores de ELISA. As primeiras reações eram feitas aqui no Departamento de Bioquímica, depois eu colocava numa caixa plástica, levava no meu carro e ia bem devagar até o Hemonorte para ler. E tinha que ser feito em meia hora. Como naquela época não tinha muito trânsito em Natal, eu levava 10 minutos para chegar lá. Mas não podia ter movimentos, porque colocava 200 microlitros num pocinho que podia colocar no máximo 250 e qualquer movimento, eu podia perder a reação.
NC: Esse trabalho rendeu publicações?
SJ: Foi meu primeiro artigo. Acho que foi o artigo mais barato que qualquer pessoa tenha publicado. Saiu no Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene, descrevendo a urbanização da Leishmaniose Visceral em Natal. A partir desse primeiro e de um subsequente que foi fruto do meu trabalho lá, tivemos a oportunidade de aplicar projetos de pesquisas nos EUA. Tinha um projeto multicêntrico do qual eu participava, envolvendo as Universidades da Virginia, de Iowa e a Cornell (todas nos EUA), coordenado pelo doutor Edgar Carvalho, da Universidade Federal da Bahia. Foram essas colaborações que nos permitiram comprar alguns equipamentos para o Departamento de Bioquímica.
NC: A senhora teve um papel importante naquela epidemia de Leishmaniose Visceral. Qual foi sua grande contribuição?
SJ: Nossa contribuição principal foi mostrar de forma sistemática onde estava o problema. O grande desafio de doenças vetoriais é que se nós queremos quebrar o ciclo, temos que abordar muitas variáveis e de forma simultânea. É o mesmo dilema para a Dengue, Zika, Chincungunha ou Doença de Chagas. São fatores importantes nesta doença a espécie humana, reservatórios animais como cães, roedores e outros, um vetor que tem uma velocidade de proliferação imensa, ciclos de pobreza, diferenças no desenvolvimento de doenças para humanos e caninos e deve-se considerar também que as estratégias baseadas na doença humana não vão para os aspectos mais globais em virtude de limites de conhecimento e de recursos, tanto humanos quanto financeiros. Isso tudo mostra a dificuldade que se tem para se ter resolutividade. A nossa contribuição naquela época foi mostrar as áreas de risco, os aspectos epidemiológicos e agora a gente está tentando entender o mecanismo de adoecimento.
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