O movimento ancestral na origem de nossas dobras Biologia do Envolvimento

sexta-feira, 29 novembro 2019
Colônias de C flexa com seus flagelos (verde) apontando para para dentro ou para fora.

Como o estudo de pequenos seres unicelulares marinhos está ajudando a entender a origem dos movimentos que originam a forma de nossos corpos

Um dos mistérios mais fascinantes da biologia é a origem da multicelularidade. Por que organismos unicelulares resolveram, de uma hora para outra, viverem uns agarrados nos outros, até criarem uma dependência tão forte que não mais podem existir sozinhos? Nós animais, por exemplo, possuímos um grupo irmão, os coanoflagelados, que é formado por diversas espécies de organismos em que uma célula vive independente. O mais incrível destes organismos é que às vezes suas células resolvem fazer colônias, abrem mão de sua independência. E essas decisões podem dar pistas sobre as nossas próprias origens.

Quando um animal está se desenvolvendo, o embrião geralmente inicialmente forma um bolinho de células. Mas para chegar ao corpo do animal, este bolinho precisa fazer uma série de movimentos que vão dobrar, recortar, espremer e esticar o corpo até ele chegar a sua forma final, os movimentos morfogenéticos. Será que coanoflagelados realizam movimentos morfogenéticos? Eles nunca formam um corpo de animal. Mas talvez um ancestral nosso unicelular já possuía um kit de ferramentas para fazer tais movimentos. Só que ao invés de serem utilizados para gerar um corpo, eles eram utilizados para outras funções. E é aí que entra o último trabalho do laboratório da Nicole King, que há muitos anos vem se dedicando ao estudo dos coanoflagelados.

Nicole King

Nicole e seu grupo foram até a ilha de Curaçau e coletaram coanoflagelados em poças de maré. Lá, eles encontraram uma nova espécie que nomearam Choanoeca flexa. Suas células têm a cara típica de um coanoflagelado, na qual um dos lados possui um colar formado por diversos microvilos ao redor de um único flagelo. Este lado com o flagelo é chamado apical. Nas espécies de coanoflagelados descritas até aqui, quando os indivíduos resolvem fazer uma colônia, os flagelos ficam sempre apontando para o lado de fora. O interessante de C flexa é que não só elas fazem colônias com os flagelos apontando para dentro como invertem essa polaridade dobrando a colônia inteira, sem alterar as relações de vizinhança entre as células. Curiosamente, estas inversões respondem à luz! Se deixarmos estas colônias iluminadas no microscópio por uma hora, elas perdem mobilidade. Mas assim que as luzes são apagadas, as colônias invertem seus flagelos para o lado de fora e se tornam super móveis. E o curioso aqui é que até então acreditava-se que coanoflagelados não percebiam luz.

Uma imagem explicando a constrição apical.

Nicole e seu grupo então mostraram que dentro dos RNAs mensageiros que C flexa expressa está o de uma rhodopsina-fosfodiesterase. Esta proteína consegue traduzir um sinal luminoso na hidrólise de nucleotídeos cíclicos. Assim, a luz apresentada do lado de fora da célula é traduzida em uma série de reações bioquímicas do lado de dentro que podem gerar uma resposta. Outra característica importante das rhodopsinas é a presença de um cromóforo que absorve a luz, o retinal. Sem ele, a luz não é absorvida e a rhodopsina fica inativa. Como o genoma de C flexa não possui enzimas para a síntese de retinal, ela tem que obter retinal de bactérias, sua comida. Para testar a funcionalidade da rhodopsina de C flexa, eles deram como comida uma bactéria que não produz retinal. Como esperado, estas colônias sem retinal não invertem quando as luzes são apagadas. Mas se lhes for dado retinal após isso, elas voltam a responder. Assim, C flexa utiliza luz como um sinal para inverterem a posição de seu flagelo em relação à colônia. Mas será que esta inversão tem alguma função?

Uma colônia de C flexa dobrando.

A resposta é sim. Acontece que as colônias com flagelos para dentro comem mais e as com flagelos para fora se movimentam mais. Eles viram que células voltadas com os flagelos para dentro fagocitam mais partículas fluorescentes do que quando estão voltadas para fora. Isso é muito importante por que esse fenótipo é muito semelhante ao que um dos primeiros grupos de animais faz, as esponjas. Esponjas possuem células muito parecidas a coanoflagelados voltadas com seus flagelos para dentro de sua cavidade gástrica, os coanócitos. E é justamente quando C flexa está voltada com seus flagelos para dentro, formando assim algo parecido com uma cavidade, que eles ativam sua atividade fagocítica em sua capacidade máxima. Assim, muito antes de animais formarem cavidades gástricas, os ancestrais comuns com coanoflagelados possuíam a capacidade de formá-las, mesmo na ausência de um corpo.

Em animais, é comum um tipo de movimento morfogenético em que um epitélio promove a constrição de um dos lados de todas as células para dobrar este epitélio em um tubo. Este movimento se chama constrição apical. Isto acontece no dobramento do tubo neural e na formação do nosso tubo digestivo. Será que o mecanismo molecular para a inversão das colônias de C flexa para o lado do avesso também envolve a constrição apical? Nos epitélios de animais, existe um anel formado por proteínas de citoesqueleto na porção apical de todas as células. Este anel cria uma tensão entre as células que dá firmeza ao tecido como um todo e ajuda no controle da permeabilidade seletiva. Durante o desenvolvimento, quando um epitélio vai se dobrar, estes anéis se contraem em diâmetros menores. Assim, as células que antes eram em forma de cubo, passam a ter um lado basal (do lado de dentro do epitélio) maior do que o lado apical (o lado que aponta para fora do epitélio). Por si só, esta maior tensão do lado de fora do que do lado de dentro faz com que todo o epitélio se dobre, e muitas vezes forme um tubo. Eles mostraram que as diferentes células de C flexa são aderidas umas as outras pelas vilosidades do colar. Olhando o citoesqueleto pelo lado de dentro das células, eles viram que elas possuem o mesmo anel formado pelas mesmas proteínas de citoesqueleto que nos animais, actina e miosina. Estes anéis se ligam diretamente ao citoesqueleto que forma os microvilos e contraem quando o a colônia se volta com os flagelos para dentro. Assim, as bases moleculares, ou parte delas, que utilizamos para formar nossos tubos já estavam provavelmente presentes no ancestral comum de coanoflagelados e animais.

E uma foto de microscopia eletrônica de coanócitos dentro da cavidade gástrica de uma esponja. Crédito Rebecca Fieth.

Nós não sabemos se o ancestral comum de coanoflagelados e animais realizava qualquer movimento coletivo entre colônias de células, como C flexa. Nem mesmo sabemos se ele formava colônias. Mas está cada vez mais claro que as ferramentas necessárias para formar um animal não surgiram de repente, de uma única mutação. Boa parte delas já estava ali, só faltava algum organismo que as utilizasse de uma forma nova. C flexa inovou e criou um movimento morfogenético, mesmo sem criar a dependência entre as células, que continuam podendo viver livres. E nós animais, viramos e reviramos nossos epitélios formando uma infinidade de formas da mais incrível beleza.

Referência:

Brunet T, Larson BT, Linden TA, Vermeij MJA, McDonald K, King N (2019) Light-regulated collective contractility in a multicelular choanoflagellte. Science https://science.sciencemag.org/content/366/6463/326

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Leia o texto anterior: Novas tecnologias e o polêmico estudo da gastrulação humana

Eduardo Sequerra

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