Um prêmio Nobel para a reciclagem celular Artigos

sexta-feira, 21 outubro 2016

Somos capazes de fazer uma reciclagem celular? Isso pode ser bom ou ruim? Atualmente, são várias as perguntas relacionadas ao Prêmio Nobel de Medicina pelas contribuições no mecanismo da autofagia. Este artigo dos pesquisadores Alexandre Teixeira Vessoni e Nilmara de Oliveira Alves explica um pouco mais sobre esse processo.

O que é a autofagia?

Autofagia, também conhecida como “auto-canibalismo celular”, é um processo no qual a célula digere seus próprios componentes citoplasmáticos, incluindo proteínas, lipídeos, glicogênio e até mesmo organelas como mitocôndrias. Neste processo, estruturas complexas são quebradas em estruturas mais simples dentro dos lisossomos (uma organela que atua como o “estômago” das células) por meio da ação de enzimas hidrolíticas que ali se encontram. Os produtos desta digestão intracelular podem ser re-utilizados pela célula para produção de energia, bem como para a síntese de diversas macromoléculas como proteínas. Este processo permite à célula se adaptar a diferentes condições de estresse (como falta de nutrientes), além de ser um importante mecanismo de “controle de qualidade intracelular”, já que permite à célula se livrar de componentes citoplasmáticos danificados e/ou disfuncionais.

O trabalho pioneiro de Yoshinori Ohsumi

O termo autofagia foi usado pela primeira vez em 1963 por Christian de Duve (ganhador do prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1974 pela descoberta do lisossomo) para descrever um mecanismo de entrega de componentes citoplasmáticos para o lisossomo. Durante as décadas de 1960 e 1980, cientistas observaram que a autofagia ocorria tanto em tecidos animais como em plantas, e que era controlada pela disponibilidade de nutrientes. No entanto, dificuldades técnicas impediam estudos bioquímicos e morfológicos mais detalhados deste processo.

Foi no início da década de 1990 que Yoshinori Ohsumi (foto) e seu grupo de pesquisa promoveram uma revolução no estudo da autofagia. Utilizando a levedura S. cerevisae (a mesma utilizada na produção do pão e da cerveja), eles observaram, pela primeira vez, que a falta de nitrogênio induzia o aparecimento de vesículas autofágicas (contendo mitocôndrias e outros componentes citoplasmáticos) dentro do estômago celular da levedura, também conhecido como vacúolo (organela equivalente ao lisossomo). O uso de leveduras como modelo de estudo oferece importantes vantagens: além de muitos processos celulares serem semelhantes aos de células humanas, elas são fáceis de manipular no laboratório e por isso são frequentemente usadas para identificar e caracterizar vias celulares importantes. Neste sentido, Ohsumi e seu grupo foram capazes de isolar leveduras incapazes de induzir autofagia (formar autofagossomos), e as utilizaram para identificar e caracterizar, pela primeira vez, diversos genes essenciais a esse processo. Seu grupo também foi pioneiro em identificar homólogos destes genes em células de mamíferos. Na realidade, muitas proteínas envolvidas na autofagia e equivalentes às encontradas em leveduras foram identificadas em células humanas, mostrando que a autofagia é um mecanismo conservado desde eucariontes unicelulares até multicelulares.

Da levedura faminta aos mecanismos de diferentes patologias: um exemplo da importância da pesquisa básica

O trabalho pioneiro de Yoshinori Ohsumi com leveduras estabeleceu os alicerces para que diversos grupos de pesquisa investigassem o papel da autofagia em diversas condições patológicas humanas, bem como durante o desenvolvimento. Diversas mutações em genes essenciais à autofagia foram associados ao desenvolvimento/progressão de diversos tipos de câncer em humanos. Nesse sentido, modelos animais genéticos deficientes na via da autofagia são muito suscetíveis ao desenvolvimento de diversos tipos de tumores, evidenciando que a autofagia é um mecanismo supressor de tumor. O uso de modelos animais revelou ainda que este processo também impede o acúmulo de proteínas tóxicas em células neurais, prevenindo neurodegeneração. A autofagia também desempenha um papel crítico na resposta imune por meio da degradação de patógenos intracelulares como vírus e bactérias, assim como no processamento e apresentação de antígenos extracelulares por células apresentadoras de antígenos. Por ser um mecanismo que promove a reciclagem de componentes citoplasmáticos, a autofagia está diretamente associada a processos de diferenciação celular, os quais envolvem um “remodelamento” do conteúdo citoplasmático durante a transição de uma célula-tronco para uma célula mais diferenciada. A autofagia também desempenha um papel crítico durante o desenvolvimento embrionário de mamíferos, além de promover (através da degradação de aminoácidos) homeostase energética em neonatos no período em que o suprimento de nutrientes pela placenta foi interrompido até ser restaurado via amamentação.

Em um estudo recém-concluído na Universidade Federal do Rio Grande do Norte em colaboração com a Universidade de São Paulo, observou-se que as partículas da poluição atmosférica oriundas da queima de biomassa na Amazônia induzem autofagia em células de pulmão humano, e que esse processo seja, provavelmente, resultado do estresse oxidativo induzido por esses poluentes. Sabe-se que os efeitos da exposição à poluição atmosférica estão associados com o aumento de doenças respiratórias, inclusive com o risco para o desenvolvimento do câncer de pulmão.

As inúmeras associações da autofagia com diversas condições patológicas tornou claro que uma maior compreensão deste mecanismo poderia trazer um positivo impacto clínico para diversas doenças. De fato, o interesse terapêutico neste mecanismo cresceu exponencialmente nas duas últimas décadas, e muitos grupos de pesquisa têm procurado desenvolver novas estratégias clínicas para doenças como câncer e mal de Parkinson por meio do uso de drogas que permitam manipular a autofagia nas células doentes. O impacto do trabalho de Yoshinori Ohsumi é desmesurado, e por isso foi agraciado com o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 2016.

Referências 

Autores:

Alexandre Teixeira Vessoni: pós-doutorando na escola de medicina na Washington University in Saint Louis (Missouri, EUA). Doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo. Tem experiência nas áreas de biologia celular e molecular, com ênfase em reprogramação celular, cultivo e diferenciação de células-tronco pluripotentes induzidas em neurônios, reparo de DNA, autofagia e células de tumores intracranianos (glioma) humanos.

Nilmara de Oliveira Alves: pós-doutoranda na Faculdade de Medicina na Universidade de São Paulo e pesquisadora visitante na International Agency for Research on Cancer (Lyon, França). Doutora em Bioquímica pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência nas áreas de genotoxicidade, biologia celular, molecular, patologia e bioquímica com ênfase nos estudos da poluição atmosférica e efeitos na saúde.

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