No dia pela eliminação da violência, a professora e pesquisadora Daiany Dantas fala do obscuro objeto de desejo que é a afetividade masculina
Na coluna desta semana, que sai no dia internacional pela eliminação da violência contra as mulheres, a professora e pesquisadora Daiany Dantas interpela aqueles que perpetram de forma sistemática essa violência, nós homens, instando-nos a refletir sobre as interdições, os mitos e as dinâmicas de poder que estruturam as subjetividades masculina na versão ocidental moderna do patriarcado e que são responsáveis por nossa incapacidade de expressar emoções e sentimentos, de tecer relações afetivas baseadas na reciprocidade e de manter relacionamentos com as mulheres que não se baseiem na posse, no controle e no exercício do poder. Uma reflexão indispensável e urgente em um país em que 13 mulheres são assassinadas todos os dias por parceiros e familiares. Daiany Dantas é professora do Departamento de Comunicação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e pesquisadora das relações entre mídia, estética e cultura, tendo como objeto o cinema.
Queridos homens
Por Daiany Dantas
A data de 25 de novembro, dia internacional pela eliminação da violência contra as mulheres, é aquela que desejaríamos nunca precisar reiterar. Vem, todos os anos, lembrar que ainda estamos eras distantes de uma sociedade igualitária, que entenda e respeite a integridade do corpo das mulheres. Que acolha a nossa liberdade de viver e amar, a gozos plenos e escolhas próprias – felizes ou infelizes, mas, inteiramente nossas. Dia para refletirmos sobre o porquê de ainda experimentarmos uma vida mediada pela violência.
Nós, mulheres, falamos das violências que nos foram impingidas todos os dias. É nossa pauta imposta diária. Conversamos sobre como é existir nesse corpo que apelidam sem nosso consentimento, articulamos táticas para seguirmos vivas e usufruímos de uma clandestinidade solidária para o acolhimento e estratégias de enfrentamento. Reconhecendo que este não é um mundo feito para nós.
Escolho, hoje, sair do nós. Espaço em que estaria ao menos protegida. Ouso me dirigir a vocês, homens. Porque chega o tempo em que preciso olhar nos olhos de meus interlocutores. Se a violência não parte de nós, como eliminá-la sem pensar em seu caráter relacional? Sem acreditar que há uma necessária agenda política para os homens no combate à violência que eles mesmos têm exercido, como parte do acordo implícito na aceitação do modelo de masculinidade vigente?
Segundo a Organização Mundial de Saúde, o Brasil é o quinto país com a maior taxa de feminicídios do mundo. Cerca de 13 mulheres são assassinadas todos os dias por parceiros e familiares. Pessoas com quem mantivemos, em algum momento, um pacto de confiança. Alguém de quem já desejamos ter a atenção, com quem partilhamos planos, desejos e intimidade. Em que curva se perde essas tentativas de afeição, amor e amizade? Como explicar um desvio que não é acaso, é padrão. Que se manifesta na normalidade dos lares mais comuns, nos gestos dos homens mais banais. Pois, matar uma mulher em nome da suposta honra é banal. Já foi, inclusive, admitido legalmente. O padrão masculino instituído por nossa sociedade justifica o assassinato de mulheres no mundo inteiro.
Ter nascido mulher me coloca numa esfera de objeto da qual luto para escapar. Mas, ter nascido homem, com todos os privilégios que isto traz, tangencia vocês a um duro acordo com o patriarcado, os implica na agência da violência, numa vida em que o sentimento torna-se tão esvaziado e distante que por vezes entra em desacordo com a função que lhes é cobrada neste planeta. “Ah, mas homem já chora, sim”. Sim, mas a que preço? E como? E o que tem mediado esse choro tão reprimido, historicamente suscetível à ridicularização?
Em seu texto A vontade de mudar: homens, masculinidade e amor, a escritora bell hooks fala do quanto a incapacidade de amar dos homens é pouco problematizada em nossa sociedade. Muitas vezes naturalizada e aceita como norma, deixa de ser percebida como uma construção que hierarquiza e compromete as relações mediadas pelo afeto, quaisquer que sejam. hooks adverte que invejamos tanto a resistência ao sofrimento afetivo masculina, que está implicada em relações de poder e dominação sobre as mulheres, que deixamos de perceber o que isto diz a respeito da própria masculinidade.
Para hooks, não é casual pouco discutirmos as frustrações de meninos e meninas em relação ao desejo de receber amor da figura paterna. A atenção do pai, uma expectativa frequentemente frustrada na infância de ambos os gêneros, muitas vezes é convertida em um apelo pela violência. Receber castigos físicos de seu pai era a única forma de ser tocada por ele, lembra a autora. Deste modo, muitas meninas aprendem que a atenção de um homem é marcada pela rigidez e disciplina. E, muitos meninos, que “ser homem” é exercer, sobretudo pela violência, esse rigor. Pais e avós protetores e acolhedores, na fala, na escuta e no gesto, eram tidos como fracassos familiares. Em geral, também apontados como maus provedores e submissos.
E desse laço de ausência e desamor vem o talho de muitas masculinidades que se acreditam o elemento disciplinador das relações. Em seu livro O homem não tece a dor, a antropóloga Berenice Bento diz que a subjetividade masculina se organiza na escassez e na interdição: do choro, da fala e da afetividade. E também demanda uma estrutura relacional que oprime homens e mulheres em pactos conjugais restritivos ao afeto de ambos.
Se, numa relação, às mulheres é negado o direito igualitário ao prazer e delas se cobra uma performance de feminilidade pelo cuidado com a vida doméstica e com a maternidade, para os homens, o recado entendido é que o afeto virá como um prêmio pela manifestação de suas qualidades restritivas. Bons homens precisariam ser esvaziados de emoção e delimitadores de disciplina. São as famílias, portanto, a instituição que mais reforça esse modelo.
Famílias que se mantém e se reciclam por meio de uma mitologia que celebra essas dicotomias excludentes: o mito do amor romântico. Se, em sua origem, o amor romântico afirmava o exercício da sexualidade apaixonada e os casamentos fora dos arranjos formais, a modernidade reteve aquilo que ele traz de mais conservador, a manutenção de códigos de violência e dominação. “Inconformados com o fim da relação”, homens todos os dias assassinam mulheres que foram suas companheiras. Porque estas incorreram no desvio de não admitir uma relação conjugal como um destino.
O documentário O silêncio dos homens (2019), lançado em agosto pela organização Papo de Homem e disponível na plataforma YouTube, traz depoimentos de homens que incorreram nas rodas de conversa sobre masculinidade tóxica para tentar desprogramar sua relação de restrição afetiva. Com variadas idades e classes sociais, eles relatam episódios em que se reconheceram reprodutores de machismo e violência.
Compreendendo, pela fala, pelo choro e pelo resgate da memória – ou seja, tudo aquilo que é interdito na expressão comum da masculinidade – a sua responsabilidade cotidiana pelo cultivo de relações que sejam fundadas mais no afeto e menos na disciplina pela violência. Grande parte deles admite que foi por meio da expressividade – tão encorajada nos homens a respeito de todos os assuntos, exceto de si mesmos – que conseguiram se dar conta dos efeitos do conceito de posse e da violência como norma conjugal. Como escudos que receberam de pais para filhos e dos quais tinham imensa dificuldade de se desfazer. O lugar da masculinidade violenta é, para muitos, a única referência reconhecida de seu papel no mundo.
Queridos homens, entre vocês há muitos que amei e amo – meu pai, meus irmãos, meus amigos, sobrinhos e aqueles que foram meus companheiros – e de quem eu desejo receber nada menos que amor. Não deveria caber a mim escrever esse texto mendigando uma experiência de partilha, festejo e alegria. Nós, homens, mulheres e não binários, não precisamos viver da mendicância de um patriarcado que não sustenta a complexidade das nossas muitas e lindas emoções. Eu proponho a vocês que neste dia de dor, sintam-se menos acuados por desejos e papéis que escolheram por nós, alheios à nossa vontade. E mais parte da responsabilidade de viver num mundo em que não se evoque dor a cada vez que se escreva a palavra amor. Um afetuoso abraço,
Daiany Dantas
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Antonino Condorelli é Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Antonino Condorelli
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