O que esperar daqui para frente? Só se pode esperar a destruição da civilidade pública e das políticas sociais implantadas pelos governos de centro e de esquerda depois do fim do regime militar
(Homero Costa)
Arend Lijphart, no livro Modelos de democracia: o desempenho e padrões de governo em 36 países, publicado em 1999 pela Yale University e no Brasil em 2003 pela Editora Civilização Brasileira, afirma que há duas principais formas de organização de uma ordem democrática, dois modelos , o Majoritário (que ele chama também de Modelo Westminster – referência ao palácio em Londres, onde se reúne o Parlamento do Reino Unido) e o Modelo Consensual.
No modelo majoritário, como o nome indica, as regras e instituições têm por objetivo construir o governo da maioria, estabelecendo limites de atuação para as minorias e o poder tende a se concentrar em um partido.
Quanto ao modelo consensual, as minorias são incluídas e participam do poder, em alianças ou coligações. Nestes, em geral, existe um sistema eleitoral (e partidário) com representação proporcional que permite e estimula a formação de maiorias e no qual o poder se dispersa entre os partidos que participam da formação dos governos.
Em relação a esses modelos, como o Brasil se enquadra? Para o cientista político e professor da USP, Rogério Arantes, no artigo Três cenários para Bolsonaro, publicado em novembro de 2018 “mais que do que consensual, o sistema brasileiro pode ser descrito como ultraconsensual”, no qual “a única instituição de escopo nacional e cujo ocupante pode se considerar representante da maioria social é a presidência, eleita pela maioria do eleitorado”.
Nesse modelo, como o nome também indica, há a necessidade de se construir consensos para se governar, mantendo a autonomia dos poderes. Para isso, as regras eleitorais tem um papel importante e em países, como é o caso do Brasil, estimulam o multipartidarismo, torna mais difícil assegurar a governabilidade, caso não haja habilidade política suficiente por parte do chefe do Executivo de compor consensos.
O sistema eleitoral adotado no Brasil, de listas abertas – que não existe na maioria dos países que adotam esse modelo – estimula o multipartidarismo e portanto, a fragmentação partidária. A composição dos parlamentos – municipais, estaduais e o Congresso Nacional – expressam a diversidade: nas eleições de outubro de 2018, por exemplo, aumentou de 28 para 30, o número de partidos com representação no Congresso, sendo que 13 diferentes partidos elegeram governadores (em 2014 eram 9). No Senado são 21 partidos (81 senadores), em 2015 eram 15 e foram eleitos 54 de 20 partidos diferentes (considerando o PTC, que já tem senador e não elegeu candidatos, são 21 partidos com representantes).
No país, são 33 partidos com registro junto ao Tribunal Superior Eleitoral. Havia 35 e diminuiu para 33 porque o Partido Republicano Progressista (PRP) foi incorporado ao Patriota e o Partido Pátria Livre (PPL), ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
E existem 76 partidos em formação. Para sua criação, é necessário que haja uma tramitação, com coletas de assinaturas e solicitação de registro no Tribunal Superior Eleitoral etc.
Caso sejam aprovados, como governar um país com mais de 100 partidos? Embora tenha havido algumas iniciativas para reduzir a fragmentação partidária (como a cláusula de barreira, fim das coligações em eleições proporcionais etc.) ainda não se conseguiu evitar a criação de siglas (muitas, meras legendas de aluguel) e hoje o país tem um dos sistemas partidários mais fragmentados do mundo. Com um detalhe importante: o partido com maior representação na Câmara dos Deputados (513) na eleição de 2018, o PT que elegeu 56 deputados, tem pouco mais de 10% das cadeiras e o PSL, partido pelo qual o presidente foi eleito, elegeu 52 na Câmara e apenas 4 dos 81 senadores.
O fato é que por maior que seja a diferença entre os votos dos candidatos numa eleição presidencial, o partido do presidente eleito, desde a primeira eleição direta pós ditadura civil-militar (1964-1985), sempre foi minoritário e assim para governar havia (e há) a necessidade de construir alianças, consensos, compartilhar poder e decisões, fazendo aquilo que só se critica (quando se faz) nas campanhas eleitorais, ou seja, a velha e conhecida política do toma-lá-dá-cá.
Essa é a forma de governar que o cientista político Sergio Abranches chama de presidencialismo de coalizão, que funciona bem quando o chefe do Poder Executivo (presidente da República) tem capacidade de articular e especialmente de manter uma coalizão no Congresso Nacional. Os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) Lula (2003-2010) Dilma (até 2014) e Michel Temer (2016-2019) conseguiram manter esse sistema.
A questão é, como ficou esse sistema com eleição de Bolsonaro? No citado artigo de Rogério Arantes, ele constrói alguns cenários possíveis, afirmando que naquele momento seu governo ainda era uma incógnita (novembro de 2018), mas que o contexto institucional e político eram bastante conhecidos, o que permitia vislumbrar três cenários possíveis para o desenrolar de seu governo.
Os três cenários eram: a sua adesão ao presidencialismo de coalizão, com suas regras e incentivos (“esquecendo as bravatas do candidato que se dizia antissistema, mas que tinha três décadas de atividades parlamentar e fez da política sua profissão”), embora, salientasse algumas possíveis dificuldades que teria de enfrentar com seu eleitorado e apoiadores que “considerarão essa fraquejada como estelionato eleitoral”, já que havia a promessa de governar “à revelia dos partidos e do sistema político supostamente corrompido e incapaz de fazer frente aos desafios do país”; o círculo militar que não permitiria concessões e não menos importante, era “preciso considerar que suas afirmações autoritárias representam suas preferências sinceras e não apenas bravatas para ganhar uma eleição e, neste sentido, orientarão de fato seu governo”.
Outro cenário era o que chamou de autoritarismo legal ou legalidade autoritária, no qual “O próprio candidato passou quatro anos em campanha reivindicando o retorno a algum tipo de ordem autoritária, evocando a ditadura, elogiando brilhantes-ultra-torturadores e afirmando que faria o que o regime militar não fez, “matando uns 30 mil” (incluindo inocentes), acabaria com toda forma de “ativismo” etc., e no limite, seus inimigos “vão todos para “a ponta da praia”, “gíria militar que designa a base da Marinha na Restinga da Marambaia, no Rio de Janeiro, que funcionou como centro de extermínio de opositores do Regime pós-64”.
E o terceiro e último cenário seria a de “um governo errante, porém mobilizador, estimulador da violência na sociedade e beligerante internacionalmente. E acrescenta, será “provavelmente curto”. Com uma ressalva importante: nos dois primeiros terminaria seu mandato, mas neste último (o errante) “parodiando o filósofo Thomas Hobbes, sua vida será ‘solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.”
Neste “poderia se recorrer à mobilização popular direta “com o agravante de que seus elementos aglutinadores (…) têm sido o ódio e a violência, da qual ele mesmo já foi vítima”, ou seja, “a pregação de ódio e a identificação de um inimigo interno a ser combatido seguirão como estratégias dominantes, sob o risco de estimular ainda mais a violência na vida política e na sociedade”.
Onze meses de governo, qual o cenário? Adesão a regras e procedimentos do presidencialismo de coalizão? Mas, como? Fernando Limongi, professor de Ciência Política da USP, no artigo Presidencialismo do desleixo (Revista Piauí n. 158, novembro de 2019) afirma que crítico da negociação política e da formação de uma base de apoio consistente, o presidente substituiu o presidencialismo de coalizão pelo desleixo e que em função da inoperância presidencial, da incapacidade política de construir consenso, o Congresso assume a responsabilidade de governar (expressão disso foi a aprovação da Reforma da Previdência) e que quando comparada à importância que dá aos interesses da família, a atenção do presidente dedicada à agenda legislativa é nula. Para ele, o que existe é um governo caótico e o modo Bolsonaro de governar “é errático, inconsistente e ditado pela própria bílis”. Entre outros aspectos, se refere à briga com Luciano Bivar e o PSL, atestando sua inabilidade política.
Assim, o atual cenário se aproximaria mais do terceiro, no entanto, ele deveria “evoluir para o uso de mecanismos de participação direta, como plebiscitos e referendos, imaginando que dispõe de maioria social para apoiar suas medidas”, o que não ocorreu até agora e tampouco, mesmo sem uma base consistente de apoio no Congresso, não tem seu mandato ameaçado.
Mas, ao que parece, há uma mistura dos três cenários. Uma tentativa de se compor com alguns partidos no Congresso para aprovar algumas medidas, com liberação de verbas para aliados, como ocorreu no dia 10 de julho de 2019, um dia antes da votação da reforma da Previdência, no qual o governo empenhou R$ 1,1 bilhão em emendas parlamentares ao Orçamento da União. De acordo com dados da ONG Contas Abertas, desde março, o Executivo já havia empenhado R$ 4,3 bilhões em emendas e em apenas os primeiros cinco dias de julho, foram R$ 2,55 bilhões.
Mas isso não significa que necessariamente terá apoio até o final do mandato. Como a base aliada é inconsistente, há sempre necessidade de negociações e claramente há uma dificuldade da presidência na composição no Congresso Nacional e assim fica à mercê das circunstâncias, não conseguindo sequer manter unido o partido que o elegeu, se desfiliando e criando outro partido.
O que esperar daqui para frente? Segundo Fernando Limongi no referido artigo “só se pode esperar a destruição da civilidade pública e das políticas sociais implantadas pelos governos de centro e de esquerda depois do fim do regime militar”. Esta, para ele, é a sua verdadeira agenda. Até quando, não se sabe, mas se não houver reação, resistência dos principais prejudicados pelo conjunto das medidas já aprovadas e outras a caminho, provavelmente até o fim do mandato.
Referências
Controvérsia: Três cenários para Bolsonaro
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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Homero de Oliveira Costa
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