Responsável pela classificação de oito novas espécies, sendo uma exclusiva do RN, a pesquisadora Eliza Xavier tem se dedicado a preservar esse bioma
A cidade do Natal/RN é uma mistura de urbanismo e natureza. Além do mar que margeia parte de seu limite geográfico, uma área imensa de dunas e florestas torna a visão urbana muito mais agradável. Essa porção de Mata Atlântica, que separa as zonas Sul e Leste, onde estão alguns dos bairros onde se concentra a classe mais alta, se estende por 1.172 hectares e é considerada o segundo maior parque urbano do Brasil, superado apenas pela Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Apesar de estar no coração da cidade, pouca gente sabe que o Parque é um dos habitats de uma espécie de lagarto que só existe no Rio Grande do Norte. O Lagartinho-de-folhiço, um dos menores da América do Sul, da família dos Sphaerodactylidae, é uma espécie endêmica remanescente da Mata Atlântica potiguar. É tão importante que, em 2014, foi instituída, por meio de decreto municipal, como símbolo dos remanescentes florestais das Zonas de Preservação Ambiental (ZPA’s) 1 e 2 da cidade de Natal. Ou seja, esse bichinho só foi encontrado no Parque das Dunas e no Parque da Cidade Dom Nivaldo Monte, não existindo em nenhum outro lugar do mundo.
A espécie recebeu o nome científico de Coleodactylus natalensis e foi catalogada em 1999, pela professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Eliza Maria Xavier Freire, referência no estudo da herpetologia no Nordeste e no Brasil. Medindo em média 22 milímetros de comprimento rostro-anal, a ecologia do animal ainda é pouco conhecida. Sabe-se, até agora, que esse animal se alimenta de insetos, geralmente isópodos, possui hábitos diurnos, embora não goste do sol, e põe apenas um ovo por ninhada.
Embora catalogado tão recentemente, o Lagartinho-de-folhiço já era um velho conhecido da professora desde 1984, quando ainda era estudante no Centro de Biociências (CB/UFRN). Na época, Eliza utilizou o espaço do Parque das Dunas como laboratório vivo para estudos com as espécies da herpetofauna (répteis e anfíbios) do local e acabou descobrindo o Lagartinho-de-folhiço.
Como existiam poucos herpetólogos no Brasil, pesquisadores dedicados ao estudo dos répteis e anfíbios, a descrição da espécie acabou atrasando mais do que a pesquisadora esperava. Nesse tempo, no entanto, ela aproveitou para aprofundar suas pesquisas sobre a herpetofauna nordestina, campo em que se destacou e ao longo do tempo, o que lhe permitiu descobrir outras sete novas espécies nordestinas, além do lagartinho.
A professora conta que só muitos anos depois foi possível descrever o Lagartinho-de-folhiço como parte da sua pesquisa de doutorado em Ciências Biológicas/Zoologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com atuação no Museu Nacional. O acesso ao grandioso acervo do Museu, que foi devorado pelo fogo em setembro de 2018, permitiu que ela conseguisse comprovar o ineditismo da espécie.
Outras descobertas
Referência em herpetologia no Brasil, Eliza Xavier tem dado importante contribuição para a preservação da Mata Atlântica. Suas descobertas significam muito para a preservação desse bioma ameaçado há gerações. Assim como o lagartinho, ela conseguiu concluir o trabalho de catalogação das outras sete espécies que descobriu. São três tipos de rãs (Phyllodytes gyrinaethes, Chiasmocleis alagoanus, Phyllodytes edelmoi); outro lagarto (Dryadosaura nordestina); duas serpentes (Bothrops muriciensis e Dendrophidium atlantica); e uma cobra (Liotyphlops trefauti).
Esse trabalho da pesquisadora, que em 2002 voltou para a UFRN como professora, fortalece a luta pela preservação ambiental. De acordo com os dados de maio de 2019 do Atlas da Mata Atlântica, organizado pela Organização Não-Governamental SOS Mata Atlântica, atualmente restam apenas 12,4% da floresta que existia originalmente. Isso significa que 87,6% de fauna e flora da mata, ou seja, mais de sete vezes o percentual existente, foram aniquilados pelo ser humano.
No Rio Grande do Norte, as duas zonas de preservação ambiental, o Parque da Cidade e o Parque das Dunas, são as remanescentes da floresta. O Parque das Dunas é a maior área de conservação de Natal, com quase dez vezes a área do Parque da Cidade, que conta apenas 136,54 hectares. Eliza Xavier destaca que, embora essas áreas estejam entre as zonas de preservação ambiental de Natal, cuidar da sua manutenção e preservação continua sendo papel de todos, por isso ela trabalha na conscientização das pessoas, inclusive de seus alunos, sobre o cuidado com o meio ambiente. “Sempre falo com meus alunos sobre as questões ambientais. O ambiente é uma corrente, quando se arranca um elo o desequilíbrio começa. O inseto, na natureza, não é praga. Ele é praga quando é retirado do ambiente em que vive”, reforça.
Reconhecimento e atuação no ICMBio
A consciência é parte do que move a professora Eliza na luta pela conservação e preservação da natureza. O reconhecimento ao seu trabalho de herpetóloga rendeu o convite, em 2011, para fazer parte, como coordenadora-executiva, do Plano de Ação Nacional para Conservação da Herpetofauna Ameaçada da Mata Atlântica Nordestina (PAN). O convite veio do Setor de Répteis e Anfíbios (RAN) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão ambiental do governo brasileiro ligado ao Ministério do Meio Ambiente.
A iniciativa buscava salvar duas espécies de jararaca do Nordeste ameaçadas de extinção, uma que ocorre na Bahia, a Bothrops pirajai, e outra encontrada pela própria pesquisadora em Alagoas, a Bothrops muciriciensis. Em 2011, ao participar de uma oficina no Congresso Latino-Americano de Herpetologia em Curitiba, Eliza propôs ampliar a ação do Plano, de maneira a possibilitar atender outras espécies da herpetofauna ameaçadas do Nordeste, em vez de apenas duas.
Levada para discussão em outros fóruns, a proposta foi aprovada e, em 2013, as reuniões para o PAN da Herpetofauna Nordestina começaram com o primeiro encontro realizado em Natal, com o apoio da UFRN. “Como eu era coordenadora-executiva, incluí a UFRN na organização da primeira oficina de preparação dos pesquisadores, com a participação de ONGs e órgãos públicos de defesa, como o Idema e o Ibama, para planejar em conjunto essas estratégias”, explica a professora.
Na reunião de Natal, foram criados grupos de pesquisa para atuar nos estados nordestinos de Sergipe, Pernambuco, Ceará, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte. A partir daí, começou o processo de revisão das espécies ameaçadas de extinção na Mata Atlântica, com reuniões anuais sob a Coordenadoria-Executiva da professora Eliza Xavier, que também participou dos grupos de pesquisa dos estados da Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte.
Desde então, a professora tem trazido mais dados de suas espécies descobertas para a pesquisa, especialmente em relação ao número atual e a localidade de cada espécie. “O Lagartinho-de-folhiço encontrado no Parque das Dunas de Natal, por exemplo, localiza-se em duas áreas restritas da nossa cidade e isso acontece com as outras espécies também”, conta.
PAN Conservação da Herpetofauna
O Plano de Ação Nacional para Conservação da Herpetofauna Ameaçada da Mata Atlântica Nordestina foi lançado em 2018 pelo Ministério do Meio Ambiente, por meio do ICMBio. Trata-se de um documento elaborado em forma de e-book que teve a participação de vários pesquisadores, incluindo a professora da UFRN, que assina a autoria de dois capítulos, sobre A Mata Atlântica de Alagoas e sobre a Mata Atlântica da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Ambos integram a parte I do livro, cujo tema é: Herpetofauna Nordestina Ameaçada e Estratégias de Conservação.
A publicação apresenta a Mata Atlântica nordestina como um dos centros de biodiversidade mais ameaçados do mundo, destacando que a área começou a ser suprimida, desde os tempos do Brasil colonial, pela pecuária e monocultura de cana-de-açúcar. Segundo o documento, o bioma encontra-se altamente fragmentado e os poucos remanescentes de vegetação ainda nativa são de grande prioridade para conservação, abrigando alta biodiversidade de anfíbios e répteis, muitos deles endêmicos. É sobre essa diversidade, a herpetofauna, de que trata o estudo: das espécies de anfíbios e répteis ameaçadas de extinção e sobre a adoção de políticas públicas e ações estratégicas voltadas à conservação.
No texto sobre as condições da Mata Atlântica de Alagoas, Eliza Xavier revela que a herpetofauna ameaçada registra, atualmente, 62 espécies de anfíbios (61 de anuros e 1 de cecília) e 89 espécies de répteis (50 de serpentes, 31 de lagartos, 5 de anfisbênias, 2 quelônios e 1 de jacaré). Nessa área, o Agalychnis granulosa é uma das 14 espécies de pererecas do gênero Geotropical Agalychnis Cope, anfíbio que habita a Área de Proteção Ambiental do Catolé e Fernão Velho e a Serra da Saudinha, ambas no município de Maceió, e a Estação Ecológica de Murici, no mesmo município. As espécies de pererecas do gênero Geotropical Agalychnis Cope ocorrem em florestas tropicais da América Central, na região amazônica e ao leste da América do Sul.
Sobre os estados da Paraíba e Rio Grande do Norte, a pesquisa realizada pela professora revela que até a década de 70 ainda existiam remanescentes florestais consideráveis e em bom estado de conservação, mas que foram afetados pela degradação ambiental, com o advento do Programa Nacional do Álcool (Proálcool) e o adensamento urbano, na maioria das vezes desordenado.
A fauna do RN é considerada uma das menos conhecidas da região. Porém, segundo o estudo, “o desconhecimento revela que ainda há muito para se descobrir no seu território em função da variedade de ambientes existentes”. O PAN destaca que, apesar da redução e fragmentação da Mata Atlântica no RN, um estudo realizado em 1996 no Parque das Dunas anotou 17 espécies de lagartos. Os resultados confirmam a existência de um grau de variação na composição da herpetofauna ao longo da Mata Atlântica, o que indica que a herpetofauna desse bioma no nordeste é notadamente diferente daquela do sudeste e sul do Brasil.
Para o domínio da Mata Atlântica paraibana, estão registradas 41 espécies de anfíbios e 63 de répteis. Já para a Mata Atlântica potiguar, 40 espécies de anfíbios e 60 espécies de répteis. Para os estados da Paraíba e Rio Grande do Norte não existem registros das espécies-alvo do PAN Mata Atlântica Nordestina. Porém, registra o documento, que outras espécies não categorizadas em algum grau de ameaça, mas que necessitam de atenção do ponto de vista conservacionista, estão sendo tratadas como ‘espécies beneficiadas’.
Políticas públicas e estratégias para proteção da Mata
No Plano de Ação Nacional para Conservação da Herpetofauna Ameaçada da Mata Atlântica Nordestina são apontadas diretrizes que podem servir de suporte para tomadas de decisões na criação de políticas públicas e estratégias de proteção das áreas e mesmo na conscientização dos municípios sobre a importância da conservação ambiental.
A adoção de políticas públicas e estratégias de conservação podem representar uma saída para a recuperação dos remanescentes não protegidos, e estes podem servir como habitat seguro para as espécies ameaçadas, a Coleodactylus natalensis, por exemplo. Essa é a menor espécie do gênero Coleodactylus, que é uma das menores espécies de lagartos da América do Sul.
Populações da espécie Coleodactylus natalensis foram registradas em três fragmentos reconhecidos e denominados como Zonas de Proteção Ambiental (ZPAs) na capital do Estado, Natal: ZPA 1 – Parque Municipal Dom Nivaldo Monte; ZPA 2 – Parque Estadual das Dunas de Natal; e ZPA 5 – distrito de Lagoinha. Além desses locais, em fragmentos de áreas verdes no campus da UFRN e áreas dos municípios de Parnamirim, que integra a Região Metropolitana da capital, e Tibau do Sul, há 76 quilômetros de Natal.
O estudo considera como áreas potenciais para conservação no município de Natal as dez Zonas de Proteção Ambiental (ZPAs), as Unidades de Conservação, os remanescentes de dunas e as demais áreas verdes no espaço urbano.
Enoleide Farias e Marcelha Pereira / Agecom-UFRN
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