Como instituições centenárias da ciência do nosso continente podem facilmente virar pó com a chegada do obscurantismo aos governos
Caros, enquanto este texto vai pro ar, estou voltando do Encontro da Sociedade Latino Americana de Biologia do Desenvolvimento, em Buenos Aires. Neste estiveram participantes de 17 países, incluindo nossos colegas ao sul do equador. Foi um congresso muito vibrante, que mostrou que estamos fazendo ciência de ponta e dando contribuições tão importantes quanto a de convidados de outras regiões do planeta. No entanto, nos bastidores estivemos sempre conversando sobre a situação política de cada um dos países e como tem sido difícil manter nossos laboratórios rodando. Quais são as grandes dificuldades dos cientistas latino americanos? Existem características comuns a todos eles?
Existe uma característica comum a todos nós. Todos somos descendentes de gigantes, cientistas que fizeram suas descobertas em condições adversas. Este ano homenageamos um destes gigantes, a Dra. Eugenia Del Pino, que dedicou sua vida ao estudo de anfíbios marsupiais (anfíbios em que as fêmeas desenvolvem estruturas em suas costas para carregar os embriões em desenvolvimento). Eu sou muito fã do trabalho dela e foi uma surpresa maravilhosa saber do prêmio que a sociedade concedeu por seu trabalho.
Nós costumamos pensar que nossas instituições, universidades, agências financiadoras etc., são entidades sólidas, não só por sua idade como pela importância que as damos. Mas este ano há uma sensação coletiva de que é tudo muito frágil. Vivemos em uma oscilação de bons e maus momentos ditados pela ideologia daqueles que chegam ao poder. Existem países que passaram por expansão recente do seu sistema científico, como nós e o Chile que segue contratando novos doutores, mas que também passam por uma retração no financiamento. É um total contrassenso contratar mais cientistas e logo depois dar menos dinheiro para que eles todos façam pesquisa. Se fosse uma estratégia minimamente planejada, é lógico pensar que o ideal seria não contratar ninguém para ter um pouco mais de dinheiro para aqueles que já estão no sistema. No otimismo, é claro que queremos evitar a fuga de cérebros e expandir. Mas logo depois somos bombardeados com cortes de orçamento que quebram todo o sistema. No Brasil até mesmo agências como o CNPq, que sempre pensamos que seria eterna, estão ameaçadas de serem fundidas, trocadas de ministério e outras atrocidades.
De tanto passar por estes ciclos políticos, os pesquisadores latino americanos desenvolveram uma característica única, a grande maioria dos chefes coloca dinheiro do seu próprio salário no laboratório. Nossos salários são o único investimento em ciência que podemos confiar. E são eles que compram pequenos equipamentos para jovens pesquisadores conseguirem montar seus primeiros laboratórios, que compram reagentes. São eles que são redirecionados para pagar gastos de alunos com passagens, inscrições etc. Tirar dinheiro do seu próprio salário para financiar o trabalho soa como uma loucura para muita gente. Isso mostra na verdade que ser cientista é uma atividade movida por muita paixão. Mostra também como é importante que o professor ganhe bem, faz uma grande diferença na produtividade científica de um país. Na Argentina, onde a moeda desvalorizou muito no último ciclo presidencial, o salário do professor está valendo muito pouco e está difícil colocar dinheiro do próprio bolso. Os poucos financiamentos ofertados para projetos valem muito pouco também. Se esta situação não mudar no novo governo, veremos o fechamento de muitos laboratórios.
Trabalhar com paixão é definitivamente uma coisa boa, traz felicidade. Mas para ter uma ciência sólida, é preciso continuidade. Laboratórios produzem informações que são construídas ao longo de muitos anos, muito mais do que os ciclos políticos. Houve no passado tentativas de garantias de financiamento com porcentagens do PIB de países, estados e províncias. Mas as medidas são anunciadas e facilmente descumpridas. Não existem garantias.
Os principais beneficiados por financiamento em ciência não são os cientistas, mas sim a sociedade. Mais parece que os governos fazem um favor ao fluir dinheiro para os laboratórios, mas na verdade é o contrário. Os cientistas é que geram riquezas para a sociedade com sua ciência. E não são só riquezas materiais, nós geramos conhecimento, uma riqueza humana, essencial para a memória de identidades. Essencial para que continuemos homenageando, e não derrubando, gigantes da ciência latino americana.
A coluna Biologia do Envolvimento é atualizada quinzenalmente às sextas-feiras. Leia, opine, compartilhe, curta. Use a hashtag #BiologiadoEnvolvimento. Estamos no Facebook (nossaciencia), no Instagram (nossaciencia), no Twitter (nossaciencia).
Leia o texto anterior: Consumo de maconha na gestação: O que sabemos?
Eduardo Sequerra
Deixe um comentário