O passado recente e o momento atual têm muito a nos dizer sobre o futuro científico do país
A Argentina, nosso vizinho sul-americano, inicia a semana com a certeza de que terá mudanças. Isso por conta do fim do processo eleitoral que definiu a chapa vencedora, a qual terá quatro anos para mostrar a que veio. É cedo, contudo, para dizer se para melhor ou pior. Sempre que há mudanças, esperam-se melhorias também, o que, infelizmente, nem sempre acontece.
Para falar um pouco da importância dessa relação entre a política e a ciência, vamos remeter ao caso tupiniquim, antes de voltarmos a falar dos hermanos. Acredito que desde 2014 – quando se iniciaram os cortes no orçamento da ciência nacional e as inúmeras mudanças pelas quais esta tem vivenciado – até o presente momento, ficou muito claro (e bem didático!) como as decisões políticas influenciam os rumos científicos de uma nação e reverberam na comunidade científica. Foge do escopo desse texto se ater à crise econômica e política que influenciou decisivamente as mudanças em curso desde então.
Pois bem, um artigo publicado semana passada na Science e intitulado em tradução livre “Cientistas argentinos se reúnem a favor dos favoritos nas eleições presidenciais de domingo” mostrou as expectativas de alguns membros da comunidade científica argentina antes do pleito de domingo. Passado o processo e sabendo quem são os vencedores (Alberto Fernández e Cristina Kirchner), é bom relembrar e reafirmar as expectativas diante da mudança.
De acordo com o texto, milhares de cientistas argentinos esperam que o homem que será o próximo presidente do país (já sabemos!) reverterá os cortes profundos nas pesquisas impostas pelo governo conservador do presidente Mauricio Macri. Mas a primeira prioridade de Alberto Fernández, o principal candidato nas eleições de domingo, quase certamente será a economia em ruínas da Argentina. E não está claro quando – ou com que eficácia – as preocupações dos cientistas serão abordadas.
O texto ainda pontua que a vice de Fernández, Cristina Kirchner, ganhou o apoio de muitos cientistas ao criar o primeiro Ministério da Ciência da Argentina. Ela também aumentou o número de bolsas de estudos e prometeu criar mais empregos no Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (CONICET). Por outro lado, Macri – que fora eleito em novembro de 2015 – eliminou o Ministério da Ciência e reduziu os novos empregos do CONICET para menos de um terço do nível que Kirchner tinha como alvo para este ano. Outros cortes deixaram os laboratórios de pesquisa lutando para cobrir serviços básicos, como manutenção de rotina e o custo de eletricidade e segurança.
Quase 11.000 membros auto-identificados da comunidade científica assinaram seus nomes com uma declaração de apoio pró-Fernández criada pela Science and Technology Argentina (CyTA), um grupo de defesa formado em 2016 para se opor às políticas de Macri relativas à ciência e pesquisa.
O texto ainda trouxe as opiniões de especialistas da academia a favor e contra a mudança do atual líder do executivo nacional . O primeiro dele foi Rolando González-José, biólogo do Centro Nacional Patagônico de Puerto Madryn e membro do CyTA.
Segundo Ronaldo, “quatro anos de cortes combinados com um discurso muito, muito agressivo contra o trabalho científico – especialmente contra as ciências sociais – seriam interrompidos com a mudança do governo”.
O texto adverte, contudo, que embora Fernández e Kirchner tenham expressado forte apoio ao “desenvolvimento do conhecimento” e maior financiamento para pesquisas, o ingresso de ambos não deixa de ter seus problemas, especialmente sobre acusações que recaem sobre Kirchner, o que divide os eleitores sobre qual líder – Macri ou Kirchner –merece mais culpa pela atual crise econômica da Argentina.
O texto traz ainda a história da bióloga argentina Marina Simian, que estava tão desesperada diante dos cortes de Macri que apelou até para a versão local do programa Quem quer ser milionário para comprar reagentes para a pesquisa de câncer de seu laboratório na Universidade Nacional de San Martin. Ainda assim, ela planejava votar em Macri por temer que uma vitória de Fernández-Kirchner signifique um governo mais autoritário e menos transparente. E embora Simian tenha criticado a visão de Macri da ciência, ela diz que os cientistas estavam protestando contra baixos salários e escassez de subsídios muito antes de Macri assumir o cargo. Ainda segunda a bióloga, “não fomos do céu para o inferno em quatro anos, estávamos no inferno e depois caímos em um inferno pior.”
Já Mario Pecheny, pesquisador de ciências políticas da Universidade de Buenos Aires e vice-presidente de assuntos científicos da CONICET, espera que Fernández seja pressionado a cumprir suas promessas, dadas as dificuldades econômicas do país. Mas ele acha que uma vitória de Fernández (o que aconteceu!) será um passo positivo para a pesquisa. Ainda segundo Mario, aponta o texto, “não tenho certeza absoluta de que o novo governo faça o que quisermos, mas acho que será muito mais amigável para a ciência.”
Portanto, caros leitores, politizar-se é essencial para dar um direcionamento para os bons ventos que podem mudar (para melhor e não para pior!) os rumos de um país. Ninguém está imune às decisões das lideranças políticas, sejam elas benéficas, sejam elas maléficas. Aos hermanos, desejo boa sorte nessa nova fase. E à comunidade científica, seja daqui, seja de lá, não resta dúvida: fazer ciência também envolve decisões políticas.
Referências:
Lindzi Wessel. Argentine scientists rally behind favorite in Sunday’s presidential election. Oct. 25, 2019. https://www.sciencemag.org/news/2019/10/argentine-scientists-rally-behind-favorite-sunday-s-presidential-election
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Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá
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