Qual é o lugar da ciência na sociedade contemporânea? Artigos

domingo, 20 outubro 2019

Na segunda parte do artigo, a discussão acerca do ataque e o avanço da ignorância sobre a ciência

(Homero Costa)

Para ler a primeira parte, acesse aqui.

Outra iniciativa importante foi um ato realizado no dia 15 de outubro de 2019 na Unicamp, uma das mais importantes universidades brasileiras. No ato, que reuniu centenas de professores, alunos e funcionários, foi aprovada uma moção em defesa da ciência e da educação e da autonomia universitária. O documento foi elaborado pelos representantes da Reitoria, Associação dos Docentes, Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp, Diretório Central dos Estudantes e da Associação de Pós-Graduandos.

Como consta no documento divulgado pela universidade, foi a primeira vez em 53 anos de história que a Unicamp convoca um movimento nestas proporções, justificada “no contexto de uma drástica redução de recursos federais destinados ao financiamento de bolsas e demais auxílios à pesquisa (…) e para a sustentabilidade do sistema nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação”.

Assembleia realizada em 15/10/2019 na Unicamp. (Fonte; Unicamp)

Na moção à sociedade, “manifesta sua indignação diante dos reiterados ataques contra a educação e a ciência perpetrados no Brasil nos últimos meses, e conclama a sociedade a unir-se em defesa da universidade pública gratuita, laica, socialmente referenciada e de qualidade” e que “Os obstáculos que têm sido impostos às universidades públicas – seja por meio de cortes orçamentários diretos, diminuição dos recursos direcionados às agências de fomento ou pressões de natureza econômica, ideológica ou social – colocam em risco a estrutura do sistema nacional de ciência, tecnologia, inovação e ensino, deixando o país sujeito ao retrocesso e ao obscurantismo”.

Um aspecto citado na matéria da revista Veja é como a ignorância é potencializada nas redes sociais. Os autores se referem ao universo virtual que “se transformou em um campo fértil na Idade das Trevas” e salientam que “Num processo exatamente oposto ao verificado em relação à Idade Média, que ganhou luz, a fase mais recente da Idade Contemporânea — ensolarada pela explosão da internet e sua promessa de democracia do conhecimento, pelos avanços científicos e pelo progresso social — tem se convertido em uma nova Idade das Trevas. Sai o Iluminismo (vale dizer, a razão) e entra o obscurantismo (em uma palavra, a insanidade)”.

Nesse sentido, constata um paradoxo: a tecnologia que tem a possibilidade de democratizar e acelerar a divulgação do conhecimento “virou o veículo de propagação de ideias obscurantistas, de vômitos raivosos dos ‘debates’ polarizados e até uma fonte de renda para aqueles que surfam a onda da ignorância digital”.

Umberto Eco

Como disse Umberto Eco (1932-2016), numa declaração dada no dia 10 de junho de 2015 durante o evento em que ele recebeu o título de doutor honoris causa em Comunicação e Cultura na Universidade de Turim, as redes sociais dão o direito à palavra a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. “Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”. Para ele, “o drama da internet é que ela pode transformar qualquer tolo da aldeia em portador de uma suposta verdade planetária”.

A ciência torna-se assim “vítima fácil dos obscurantistas da internet e o caldo perfeito para a propagação das teorias conspiratórias”. Maurício Antônio Lopes, então Presidente da Embrapa, no artigo publicado no Correio Braziliense no dia 10/12 de 2017 (embate entre o conhecimento e a ignorância) se refere aos psicólogos americanos Justin Kruger e David Dunning da Universidade de Cornell, que formularam o que ficou conhecido como “o efeito Dunning-Kruger”, segundo o qual “indivíduos que possuem pouco conhecimento sobre um assunto julgam saber mais que outros mais bem preparados. Os cientistas concluíram que muitas vezes a ignorância gera confiança com mais frequência do que o conhecimento, dando a pessoas desqualificadas a sensação de uma ‘superioridade ilusória’. Assim, indivíduos com ideias preconcebidas, intuições, vieses e pressentimentos constroem versões distorcidas da realidade e se agarram à ilusão de que são detentores de conhecimento confiável”.

Em relação à ignorância e aos estragos que ela pode produzir, especialmente por quem ocupa cargos relevantes na burocracia estatal, os exemplos são muitos e pode ser citado o chanceler Ernesto Araújo, que em uma palestra em Washington em agosto de 2019 afirmou, entre outras coisas, que a relação entre aquecimento global e ação humana está errada (contra todas as evidências científicas) e atribuiu ao ‘climatismo’ a reação internacional aos incêndios na Amazônia.

Marcos Bagno (Fonte: Jornal Opção)

O linguista e professor Marcos Bagno no discurso de encerramento do Congresso Nacional da Associação Brasileira de Linguística, realizado em julho de 2019, fez uma defesa da ciência brasileira. Ele inicia o discurso afirmando que, os que como ele, trabalham com a pesquisa, com a produção de conhecimento e com a educação se viam agora numa situação que ele só conseguia designar como apocalíptica e se refere ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016 “uma farsa grotesca” que “abriu o caminho para que se instalasse no poder essa bestialidade desenfreada, movida por uma irracionalidade absoluta guiada por um único objetivo: destruir. Trata-se de um projeto de terra arrasada. (…) uma pulsão de morte que move cada ato desse desgoverno, é uma perversidade sádica, é o elogio da insanidade, do obscurantismo, é a glorificação da ignorância e a consequente criminalização de todas e de todos que promovam minimamente a liberdade de pensamento, o debate sadio das ideias, o avanço social e cultural por meio do conhecimento, da arte, da cultura, da ciência”.

Os cortes de verbas para educação, os ataques à ciência (e à razão) são a consequência e contribuem para o avanço da ignorância. Trata-se, como afirma Bagno, da “rejeição pura e simples da civilização” e ainda que não tinha notícia de ter existido ao longo da história “um governo que tenha feito da educação a sua inimiga primordial. Mesmo os governos que não se empenharam em favor da educação eram hipócritas e demagógicos e, pelo menos no discurso, faziam o louvor da educação. Mas o desgoverno atual é tão bisonho, tacanho, tosco e burro que não é capaz nem sequer de cinismo. É a brutalidade em seu estado mais insano”.

Referências:

Redes sociais deram voz à legião de imbecis, diz Umberto Eco

Glorificação da Ignorância: discurso de Marcos Bagno

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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Homero de Oliveira Costa

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