O que fazer quando o obscurantismo da ignorância parece estar se sobrepondo à luz da ciência? Esse é o tema do artigo em duas partes.
(Homero Costa)
O sono da razão produz monstros (Goya)
Uma pesquisa feita pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) investigou o interesse, nível de informação, as atitudes, visões e conhecimentos dos brasileiros sobre ciência e tecnologia. O levantamento foi realizado entre os dias 16 e 26 de março de 2019.
Um dos resultados da pesquisa é que, se por um lado, nove em cada dez entrevistados defenderam que o governo deveria aumentar ou manter os investimentos em pesquisa científica e tecnológica – revelando a percepção de sua importância, revelou também o escasso acesso e apropriação do conhecimento científico dos entrevistados. Entre outros dados, constatou-se que 90% não se lembraram ou souberam citar o nome de um cientista brasileiro, 88% não se lembraram ou souberam citar o nome de uma instituição científica ou tecnológica e nem mesmo as universidades foram citadas, considerando que elas são os principais centros de produção de conhecimento científico no país.
O desconhecimento sobre a ciência se associa hoje a um cenário no qual ela está sob ataque. O historiador israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens: uma Breve História da Humanidade (2011), Homo Deus: uma Breve História do Amanhã (2015) e 21 Lições para o Século 21 (2018), numa entrevista à revista Veja, de 18 de setembro de 2019, citada no artigo Um basta à ignorância (Rinaldo Gama, Filipe Vilicic e Marcelo Marthe) afirmou que a ciência encontra-se hoje sob ataque por diversas razões: “Primeiro, porque as pessoas menosprezam as enormes conquistas que ela trouxe. Um segundo fator é que os líderes populistas estão em alta, e eles são inimigos contumazes da ciência porque ela expõe verdades que vão contra seus comandos”. Como salientado na matéria, “trata-se de um ataque sem trégua, que se estende a outras conquistas da civilização ocidental — a democracia, a tolerância, o humanismo”.
No artigo Resistência à ciência de Rodrigo de Oliveira Andrade, publicado na revista Pesquisa FAPESP de outubro de 2019 (n.284) ele diz que “A ciência vive uma crise de confiança. Em sociedades polarizadas, nas quais notícias falsas e teorias da conspiração propagam com rapidez pelas redes sociais, o conhecimento científico tornou-se alvo frequente de ataques que reverberam em grupos com crenças ou interesses políticos ou econômicos contrariados – ou simplesmente com baixo letramento”.
No atual cenário há um avanço do obscurantismo, uma espécie de retorno à “idade das trevas”, de ataques à ciência, ao conhecimento, às universidades, enfim, educação e cultura de uma maneira geral que Harari chamou de “bombardeio das sombras sobre as luzes”.
Neste momento, talvez seja importante a leitura do livro de Carl Sagan, O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro, publicado nos Estados Unidos em 1995 e no Brasil em 2006 (Companhia das Letras). Sagan foi professor de Astronomia e Ciências Espaciais na Cornell University e autor de vasta obra de divulgação científica, muitas publicadas no Brasil e também foi autor e apresentador de uma das séries sobre ciência mais assistidas na TV: Cosmos.
O livro é uma apaixonada defesa da ciência e da razão. Relevante hoje porque se constata que se por um lado, há um inegável avanço da ciência, há também, por outro, o avanço do obscurantismo, da pseudociência, que pode comprometer os avanços científicos. Como ele diz “a ciência desperta um sentimento sublime de admiração. Mas a pseudociência também produz esse efeito. As divulgações escassas e malfeitas da ciência abandonam nichos ecológicos que a pseudociência preenche com rapidez. Se houvesse ampla compreensão de que os dados do conhecimento requerem evidências adequadas antes de poder ser aceitos, não haveria espaço para a pseudociência”.
A ignorância (e a estupidez) não é específica do Brasil nem tampouco de países subdesenvolvidos. Nos Estados Unidos, segundo Sagan “Os levantamentos sugerem que 95% dos norte-americanos são cientificamente analfabetos” e se por um lado é um dos países mais avançados do ponto de vista científico, há entre outros exemplos, movimentos contra as vacinas, desprezando as conquistas do conhecimento cientifico, desenvolvido ao longo dos últimos séculos.
Sagan salienta a importância de cultivar a dúvida, o ceticismo, tal como formulado por David Hume (1711-1776), como uma posição filosófica embasada em raciocínios lógicos e não em crenças. Como disse o filósofo e matemático Bertrand Russell (1872-1970) em relação ao conhecimento: um dos grandes problemas do mundo moderno é que as pessoas preparadas estão sempre cheias de dúvidas, enquanto as ignorantes, desinformadas e incapazes estão sempre cheias de certezas.
O desprezo e a ignorância (como consequência) de governantes em relação à ciência têm como desdobramentos, o corte de verbas para pesquisas, ciência e tecnologia, educação, cultura etc. Nesse sentido, iniciativa como a formação da Coalizão Ciência e Sociedade é de fundamental importância. Criada em fevereiro de 2019, como consta em sua página disponível na internet “é um movimento plural e interdisciplinar que congrega cientistas representando todas as regiões do Brasil, reconhecidos, nacional e internacionalmente, por sua relevante atuação acadêmica em diversas áreas do conhecimento e tem a missão de divulgar informações científicas de forma clara e fundamentada, desvinculadas de interesses particulares e dogmáticos, para subsidiar diálogos objetivos e aprofundados sobre temas socioambientais relevantes para o Brasil e contribuir com a elaboração e avaliação de políticas públicas, fomentando o controle social responsável e construtivo.
No dia 2 de agosto de 2019, quando o presidente da República Jair Bolsonaro e alguns do seus ministros vieram a público desqualificar os dados apresentados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre o desmatamento na Amazônia, foi lançada uma nota em defesa do INPE em apoio “ao trabalho conduzido pelo órgão na geração de alertas e monitoramento da supressão de vegetação nativa florestal e não florestal nos biomas brasileiros”.
Segundo a nota, “O insistente descrédito dos dados públicos pelo presidente Jair Bolsonaro e parte de seus ministros não é fundamentado em argumentos técnicos sólidos e transparentes e que considerem tanto a correlação entre os dados de alertas de desmatamento gerados pelo DETER e as taxas de desmatamento geradas pelo PRODES para a Amazônia por meio da análise da série temporal de mais de uma década de funcionamento dos dois sistemas como as características intrínsecas de todas as metodologias baseadas em informações de sensores a bordo de satélites”.
E ainda que há no país hoje “a inédita situação de termos um ministro de Meio Ambiente que não defende, ao contrário, ataca o meio ambiente, e um ministro de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações que é tímido na defesa da ciência e silencia sobre a qualidade do trabalho de um dos mais conceituados institutos desse ministério e exonera seu diretor. Ambos contribuem assim com o rápido sucateamento da credibilidade, nacional e internacional, construída com esforço e perseverança por gerações de cientistas e tecnólogos ao longo de diferentes governos (…) trata-se, enfim, de um “progressivo desmonte das estruturas da ciência e de proteção do meio ambiente brasileiro”.
Leia a segunda parte desse artigo.
Referências:
Pesquisa sobre percepção pública sobre C&T no Brasil 2019
Leia outro artigo do mesmo autor:
Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Homero de Oliveira Costa