A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas. Acompanhe a análise dessa questão, nesse artigo em duas partes.
(Por Homero Costa)
Em seu ensaio Verdade e política, publicado no livro Entre o passado e o futuro (São Paulo, Editora Perspectiva, 1997, p.282-325) a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) trata da política da perspectiva da verdade. A decisão de escrever e publicar o ensaio foram justificados por ela em função das controvérsias que se seguiram após a publicação do livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1963) e no Brasil, publicado em 2000 pela editora Companhia das Letras.
Sobre a verdade e a política, diz que podemos chamar de verdade aquilo que não podemos modificar e que, claro, se contrapõe a mentira. Em relação à política, verdade e mentira diz que “Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra”, e que ninguém havia até então incluído a sinceridade entre as virtudes políticas e sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao oficio não só do político ou demagogo, como também do estadista (p.283). Para ela “a verdade factual não é mais auto-evidente do que a opinião, e essa pode ser uma das razões pelas quais os que sustentam opiniões acham relativamente fáceis desacreditar a verdade factual com simplesmente outra opinião” (p.301). A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas e mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis pelos governantes.
Nesse sentido, a marca distintiva da verdade factual consiste em que seu contrário não é o erro, nem a ilusão, nem a opinião, nenhum dos quais se reflete sobre a veracidade pessoal, e sim a falsidade deliberada, a mentira (p.308).
Em termos de política internacional, o uso de mentiras com graves conseqüências podem ser exemplificadas com as invasões do Afeganistão (2001) e do Iraque (2003) pelos Estados Unidos, duas das suas muitas intervenções militares em outros países, sempre com base em mentiras. Além dos objetivos estratégicos, desconhecidos pelo público em geral, nos casos citados, usou-se de mentiras como justificativa e também como estratégia para motivar o público a apoiá-las, levando as “ameaças” a sério.
No caso do Iraque, entre as muitas mentiras, foi a de que havia provas de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, com evidências seguras de que Saddam Hussein era aliado de Osama Bin Laden, que ele teve responsabilidade nos ataques do 11 de setembro de 2001 e ainda que os Estados Unidos estavam abertos à resolução pacífica de suas controvérsias com Saddam, quando na verdade a decisão de ir à guerra já havia sido tomada. Foi um festival de mentiras.
Outro exemplo: em junho de 1971, o jornal The New York Times teve acesso a um documento, que ficou conhecido como Os Documentos do Pentágono e publicou uma série de matérias sobre a real participação dos Estados Unidos na guerra do Vietnã. Os documentos mostraram como o governo mentia descaradamente sobre a guerra e suas justificativas.
Hannah Arendt, no ensaio A mentira na política: Considerações sobre os Documentos do Pentágono faz uma excelente análise do documento “registro altamente secreto e copiosamente documentado do papel dos Estados Unidos na Indochina desde a Segunda Guerra Mundial até maio de 1968”. (Crises da república, São Paulo, Editora Perspectiva 1973, p. 9-48).
Em relação à Guerra do Vietnã, o pretexto que os Estados Unidos usaram para entrar em guerra só se revelou (publicamente) ser uma farsa em 2005. Trata-se do que teria ocorrido no golfo de Tonquim no dia 2 de agosto de 1964, quando o governo foi informado que três navios do Vietnã do Norte se dirigiam rumo ao destróier norte-americano (USS maddox) que estava em missão de vigilância e espionagem na costa do país carregados com torpedos. Alegando que os navios teriam sido atacados, os EUA declaram guerra ao Vietnã e só 50 anos depois, documentos da Agência de Segurança Nacional, a NSA, vieram a público para afirmar que a presença das lanchas torpedeiras da Marinha norte – vietnamita nunca foram confirmadas, ou seja, agentes da NSA distorceram os fatos e ajudou a precipitar e justificar a guerra, com as conseqüências conhecidas. Portanto, o ataque ao Golfo de Tonkin foi uma operação destinada a inventar um ataque, com o objetivo de dar aos Estados Unidos o pretexto para justificar a guerra.
Há um aspecto relevante em relação ao uso da mentira por parte dos governantes, especialmente quando tem sua credibilidade posta em xeque, é a difusão do medo como uma das estratégias. É o que ocorre quando, por exemplo, um presidente mente à nação a respeito de uma ameaça externa inexistente, sabendo que os cidadãos, em geral, desconhecem o que de fato está ocorrendo. A guerra das Malvinas (2 de abril a 14 de junho de 1982) foi um exemplo que a ditadura argentina tentou usar para mobilizar o país contra a o Reino Unido, mas cujo resultado foi o contrário do que a ditadura esperava. A derrota levou a queda da junta militar que governava o país desde o golpe de 1976 (um relato bem humorado sobre o que ocorreu é o capítulo A guerra das ilhas Malvinas: 1982 do livro Guerras estúpidas: um guia sobre golpes fracassados, ações em sentido e revoluções ridículas de Ed Strosser e Michael Prince (Editora Record, 2013).
No livro Por que os líderes mentem: toda a verdade sobre as mentiras na política internacional (Rio de Janeiro, Zahar, 2012) de John Mearsheimer afirma que “Líderes que mentem para seus cidadãos pelo que acreditam serem boas razões estratégicas podem, no entanto, produzir danos significativos a seu corpo político, fomentando uma cultura de desonestidade. É por isso que a difusão do medo e os acobertamentos estratégicos são os tipos mais perigosos de mentiras que os líderes podem contar”.
Outra parte da mentira é o seu acobertamento estratégico interno: são mentiras que procuram a ocultar políticas fracassadas, mentindo sobre seus erros (nunca reconhecidos) ou suas políticas malsucedidas.
Em relação ao Brasil, algum dos usos de mentiras na política foi analisado no livro “Você foi enganado: mentiras, exageros e contradições dos últimos presidentes do Brasil” de Chico Otavio e Cristina Tardáguila (Rio de Janeiro, Editora Intrínseca, 2018). O livro, como diz na introdução “é composto por algumas das muitas histórias que envolvem mentiras, exageros e contradições que marcaram a vida política do país no último século”. O período em questão vai do governo de João Batista Figueiredo a Michel Temer.
São muitos exemplos. São oito capítulos nos quais “esmiuçamos momentos em que candidatos à Presidente da República, presidentes eleitos – tanto de forma democrática quanto indireta – e vice-presidentes recorreram a informações enganosas para obter vantagens”. Das cartas falsas atribuídas a Artur Bernardes em 1921 que atacava o clube militar e seu dirigente (Hermes da Fonseca), o plano Cohen em 1937, um documento falso atribuído aos comunistas (Internacional Comunista) e foi pretexto para o fechamento do Congresso e a instauração da ditadura do Estado Novo (1937-1945), da negação oficial das torturas, assassinatos e prisões políticas na ditadura militar (1964-1985), e muitos episódios envolvendo mentiras de Tancredo Neves (mais especificamente em relação a sua doença e a forma como as noticias foram sendo veiculadas e manipuladas) até as mentiras de Michel Temer.
Leia aqui a segunda parte do artigo.
Referência:
Leia outro artigo do mesmo autor:
Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Homero de Oliveira Costa