O estudo do cérebro de assassinos como ferramenta de eugenia Biologia do Envolvimento

sexta-feira, 4 outubro 2019

Novo estudo é o mais novo capítulo do uso da neurociência para reforçar preconceitos e apoiar ideias nefastas, nada científicas

No fim do século XIX, no estado de Nova Jersey, nos EUA, vivia uma menina chamada Emma Wolverton. Quando Emma tinha apenas oito anos de idade, sua mãe se casou novamente, com um fazendeiro. Naquela altura, sua mãe já tinha três filhos de pais diferentes, o mais novo era filho do novo marido. Como condição para esta nova união, no entanto, o fazendeiro fez com que a mãe de Emma se livrasse dela e sua irmã do meio. E foi assim que Emma foi parar na Escola de Treinamento de Vineland em outubro de 1897.

A Escola de Treinamento de Vineland era uma casa para o cuidado e educação de débeis mentais. O argumento para a admissão de Emma era que ela não socializava com as crianças na escola regular. Assim, Emma foi colocada em uma turma onde as crianças não apresentavam claros sintomas mas eram consideradas não merecedoras do convívio em sociedade. Naquela época, acreditava-se que os debéis mentais herdavam esta condição de suas famílias. Estas linhagens de pessoas eram responsáveis por produzir toda a espécie de criminosos, como assaltantes e assassinos. Assim, a internação destas crianças poderia frear a reprodução de degenerados sociais. Mal sabia Emma, no entanto, que sua presença na escola ia a colocar no centro de uma das mais famosas publicações eugenistas de todos os tempos, A Família Kalikak.

Escola de Treinamento de Vineland.

O autor deste livro era Henry Goddard, um psicólogo com doutorado no estudo da educação de crianças. Goddard se mudou para a Escola em Vineland para se tornar diretor de pesquisa, e foi lá que encontrou Emma. Goddard queria encontrar um forma de medir a mente daquelas crianças. Foi aí que em uma viagem à Europa, foi apresentado a um teste que foi criado para identificar crianças que precisavam de atenção especial, no sistema educacional francês. Mas diferente dos criadores do teste, Goddard acreditava que estava realmente medindo algo independente e inato, que ele acreditava ser a inteligência. Existem diversos problemas nas ideias de Goddard, inclusive a visão sobre a inteligência como algo progressivo e linear. Mas não havia uma só evidência de que aquilo medido nos testes seria inato, de origem genética. Temos que lembrar que o início do século XX era o alvorecer do Mendelismo, a primeira boa teoria para explicar de onde vem a variação biológica. Como vocês acham que Goddard resolveu o problema da hereditariedade da inteligência?

Os cientistas da época sabiam que a teoria de herança mendeliana era boa para descrever a herança de características discretas, que são tudo ou nada, tal como a cor das ervilhas, que só podem ser verdes ou amarelas. Mas explicar como características contínuas, como a altura das pessoas, eram herdadas era bem mais difícil. Goddard queria isolar uma população que teria os genes ruins de inteligência para que pudesse exercitar todo seu preconceito. E para isso, a inteligência deveria ser uma característica discreta. Assim, Goddard criou um sistema de classificação de débeis mentais. Os alunos com resultados no teste semelhantes a média de crianças com três anos de idade foram chamados de idiotas. Os com testes semelhantes aos de crianças entre três e sete, imbecis. Alunos como Emma funcionavam em nível mais alto. Para estes, Goddard inventou o termo moron, baseado na palavra grega para bobo. Assim, Goddard havia inventado categorias que carregavam o alelo ruim para inteligência mas não necessariamente produziria filhos débeis. Somente os imbecis, comprometiam o futuro da raça por serem homozigotos para esse gene imaginário.

Henry Goddard

A cartada final na farsa de Goddard sobre a herança em débeis mentais foi a análise das árvores genealógicas dos alunos da escola. Para isso, ele se juntou ao diretor da Estação para Evolução Experimental em Cold Spring Harbor, Charles Davenport, que já tinha experiência de analisar herança em animais e de outras características humanas como a cor dos olhos. Goddard convenceu então um filantropo a financiar a pesquisa onde um time de mulheres viajaria ao encontro dos parentes dos alunos. Após levantar dados de 327 famílias, Goddard estimou que dois terços dos débeis mentais devem essa condição à sua herança familiar. A líder de seu time, Elizabeth Kite, conseguiu cavar fundo a história da família de Emma, sempre voltando com a descrição de pessoas selvagens, que não ligam para a família, higiene e até cometiam incesto. No fim, Elizabeth conseguiu ligar 480 Wolvertons a um único ancestral, John. Logicamente ela não aplicava o teste em todas estas pessoas de diferentes gerações, Elizabeth alegou ter encontrado provas de que 143 dos descendentes de John eram débeis mentais. Mas havia um outro ramo de descendentes formado por doutores, advogados e pessoas respeitáveis. Para explicar tal fato, Elizabeth citava o relato de um idoso de que John havia dormido com uma débil mental em uma taverna (bêbado claro, para aumentar o estigma). Mas John ainda teve filhos dentro de um casamento, a linhagem de respeito. Goddard se convenceu que as árvores genealógicas provavam o que ele já sabia, os débeis mentais eram uma degeneração da qualidade genética da raça humana e deveriam ter sua reprodução controlada. E para ganhar a opinião pública, resolveu escrever um dos maiores tratados sobre eugenia travestidos de divulgação científica de nossa história. Usando Emma e sua família como fio condutor, publicou A Família Kalikak, em 1912. O livro logo virou um best-seller e foi incorporado ao currículo de instituições de prestígio. Foi utilizado em sentenças judiciais pró esterilização nos EUA, inclusive na suprema corte, traduzido para o alemão e utilizado por nazistas como ferramenta de ensino.

A árvore genealógica de Emma segundo a classificação enviesada de Goddard. Com os dois ramos, o normal e o dos débeis mentais, em preto.

Hoje em dia, sabemos que não há um gene da inteligência. Sabemos também que existem diversos componentes ambientais que são importantes para o desenvolvimento cognitivo das crianças. Mas os eugenistas estão por aí, mesmo na ciência. Em julho deste ano, foi publicado um artigo em que os autores analisaram exames de ressonância magnética do cérebros de assassinos e criminosos que não cometeram assassinatos, todos em presídios. A hipótese deles é a de que haveria uma diferença na estrutura do cérebro que poderia justificar o assassinato. E eles encontram diferenças em áreas envolvidas em processamento emocional, controle do comportamento e cognição social. Perfeito para sua ideia. Mas existem alguns problemas neste estudo. O primeiro é o desenho experimental. Qual é a probabilidade de se pegarmos dois grupos quaisquer de pessoas, como presos com barba ou não, encontrarmos diferenças em seus cérebros? Lembremos que o cérebro é composto por um número muito grande de características e se compararmos todas elas, a probabilidade de todas serem iguais é que é pequena. E creio que todos concordam comigo que é ridícula a hipótese de que existem características na estrutura dos cérebros de parte dos homens que os fazem deixar a barba crescer. Assim, o experimento nasceu morto, não tem uma hipótese razoável. O segundo problema é que mesmo que estas diferenças fossem reais, ela não podem significar nada. Não existe qualquer ligação direta entre o conhecimento do tamanho ou volume de uma estrutura do cérebro de uma pessoa e o seu comportamento. A ligação entre estas partes, as áreas do cérebro, a um comportamento, o assassinato, que só pode ser atribuído à pessoa como um todo, é chamada de falácia mereológica. No artigo, seus autores tomam cuidados com o que escrevem, como levantar a possibilidade de agentes ambientais, tais como o encarceramento e o status socioeconômico, terem influenciado no resultado. Mas eles usam uma palavra preconceituosa. Logo no título afirmam que os assassinos tem diferenças que são aberrantes, sem definir o termo ou quão diferente precisa ser para se chamar assim. Não seria uma variação normal dentro de nossa espécie? Se for realmente uma anormalidade, não seriam os outros presos que possuem cérebros “aberrantes”? Como saber quem está alterado somente com esta comparação? Os autores não escondem seu intuito, um dia serem capazes através das imagens dos cérebros e outros fatores “prever” se um indivíduo vai cometer um ato violento ou assassinato. O último autor do artigo, Kent Kiehl, sem as amarras da

Kent Kiehl, professor da Universidade do Novo Mexico.

formalidade de artigos científicos, disse à rede NBC:

“Nós iremos tentar implementar tratamentos que sabemos funcionar nestes sistemas do cérebro. Esperamos então, ver mudanças que evitariam que estas coisas acontecessem.”

Bom, sabemos que o sistema judiciário tem um viés para prender certos grupos sociais não é? Quem vocês imaginam que Kiehl está pensando em tratar? Olhos abertos meus queridos, a eugenia está viva e dentro da ciência. Projetos como este estão sendo financiados com dinheiro público e os artigos passando pelos filtros da revisão por pares. Precisamos sempre criticar estas ideias para que elas não prosperem, como um dia prosperou A Família Kalikak.

Referências

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Leia o texto anterior: Pesticidas e a primavera silenciosa da fome

Eduardo Sequerra

Uma resposta para “O estudo do cérebro de assassinos como ferramenta de eugenia”

  1. Thiago Jucá disse:

    Excelente texto professor Eduardo!

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