O fenômeno da produção massiva de notícias falsas teve impacto nas recentes eleições? Esse é o tema do artigo, publicado em duas partes.
(Homero Costa)
Daniel Levitin no livro O guia contra as mentiras: como pensar criticamente na era da pós-verdade (Editora Objetiva, 2019) afirma que estamos vivendo na era da pós-verdade, uma “era de irracionalidade obstinada, que revoga todos os grandes avanços da humanidade”. A ideia é a de que a infra-estrutura da informação, num mundo conectado, tanto pode fazer o bem como ser nociva. Ao mesmo tempo em que possibilita acesso a muitas informações, democratizando-as “tem um lado sinistro que agentes mal-intencionados podem explorar facilmente para espalhar informações errôneas e desinformação, crueldade e preconceito”.
Teresa Perosa no artigo O império da pós-verdade afirma que, mesmo com todo avanço tecnológico a maneira como processamos as informações que nos chegam continua a mesma. Então, indaga: o que estaria por trás da explosão das notícias falsas? “De acordo com os estudos mais recentes sobre o tema, a indústria das fake news foi turbinada pela combinação de três fatores, que criaram um terreno fértil para o império da pós-verdade. O primeiro é o ambiente de alta polarização política, que não favorece nem o debate racional nem o apreço pelo consenso. O segundo é a descentralização da informação, por causa da ascensão de meios de comunicação alternativos e independentes, propiciada pela internet. Parte dos novos canais tem uma agenda política, e seus compromissos propagandísticos e ideológicos suplantam qualquer compromisso com informação factual. O terceiro é o ceticismo generalizado entre as pessoas quanto às instituições políticas e democráticas – sendo os principais alvos os governos, os partidos e os veículos de mídia tradicional”.
A respeito dos impactos das fake news nos processos eleitorais, se a verdade é um dos pilares da democracia, eleger alguém que baseou sua campanha em mentiras, distorce as eleições e compromete a própria democracia. Duas eleições presidenciais nos permitem pensar a respeito sobre o tema do uso das mentiras em eleições. As eleições presidenciais dos Estados Unidos em novembro 2016 e a do Brasil em outubro de 2018.
Em relação aos Estados Unidos, Michiko Kakutani no livro A Morte da verdade: notas a mentira na era Trump (Editora Intríseca, 2018) que pretende examinar “como o descaso pelos fatos, a substituição da razão pela emoção e a corrosão da linguagem estão diminuindo o valor da verdade, e o que isso significa para os Estados Unidos e para o resto do mundo” mostra como os Estados Unidos elegeram um presidente mentiroso, que soube aproveitar-se da polarização política e como os organizadores de sua campanha usaram fake news com muita eficácia. Para ela, Donald Trump mentiu não apenas antes das eleições, durante o processo eleitoral como também (e muito) depois de eleito presidente. Ele tem o que ela chama de “hábito perverso de acusar os adversários dos mesmos pecados dos quais ele é culpado”.
Segundo Kakutani, Donald Trump mente de forma tão prolífica e com tamanha velocidade que o jornal Washington Post calculou que ele fez 2.140 alegações falsas ou enganosas no primeiro ano de governo, uma média de 5,9 mentiras por dia.
Quanto à eleição, há vários aspectos, como as fake news a favor dele nas redes sociais, mas há de se destacar o papel central da empresa britânica Cambridge Analytica, que usando dados das pessoas do facebook, segundo se revelou depois, de mais de 50 milhões de pessoas, compartilhados indevidamente pela empresa, usando ferramentas para prever e influenciar o comportamento do eleitorado. Trabalhando para a campanha de Donald Trump, filtrou dados das pessoas por meio de seu comportamento em redes sociais, permitindo que fossem geradas mensagens por Whatsapp, que teve impacto nas decisões do eleitor e, portanto, no resultado da eleição (uma excelente reconstituição desse processo está no documentário Privacidade Hackeada, lançado em julho de 2019 pela Netflix, que mostra como à empresa de análise de dados Cambridge Analytica se tornou “o símbolo do lado sombrio das redes sociais” expondo a forma e o método que utilizou nas eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2016).
Um dos responsáveis pela campanha (mentirosa) de Donald Trump foi um ex-funcionário da Cambridge Analytica Steve Bannon, que assumiu a direção da campanha de Donald Trump três meses antes da eleição e que também foi consultado sobre as eleições presidenciais no Brasil em 2018 para a campanha de Jair Bolsonaro.
No artigo Steve Bannon e as eleições fake publicado no jornal Le Monde Diplomatique no dia 23 de outubro de 2018, Artur Sinaque Bez afirma que “nos Estados Unidos em 2016 foram 50 milhões de perfis invadidos, a partir dos quais localizaram-se as mensagens com potencial de engajamento de pessoas e grupos em prol de um posicionamento político de extrema-direita (…) e que “conduz as parcelas menos engajadas do eleitorado a revoltarem-se com boatos que modificam os resultados de uma eleição ‘democrática’”.
Em relação ao Brasil, o uso das fake news tem preocupado a Justiça Eleitoral e alguns integrantes do Congresso Nacional. Em relação à Justiça Eleitoral, são várias as iniciativas, como a formação, no final de 2017 de um Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições, que tinha por objetivo desenvolver pesquisas e estudos no cenário de preparação para as eleições de outubro de 2018, planejando uma série de regras com o intuito de desestimular a divulgação de notícias falsas.
Em junho de 2018, o TSE realizou-se o Seminário Internacional Fake News: Experiências e Desafios, em parceria com a delegação da União Europeia no Brasil e assinou acordos de colaboração com partidos políticos, com o objetivo de tentar impedir a utilização de conteúdos falaciosos na campanha eleitoral, criando uma página na internet visando esclarecer sobre as informações falsas disseminadas pelas redes sociais, com links que remetiam a portais de agências de checagem de conteúdo, e vídeos “com linguagem simples e acessível”, veiculados também nas redes sociais.
O resultado é que apesar das boas intenções, não conseguiu impedir o uso sistemático das fake news nas eleições de outubro de 2018. Uma matéria publicada no dia 18 de outubro de 2019 no Jornal Folha de S. Paulo mostrou como foram utilizados perfis falsos para influenciar os resultados das eleições. Empresários compraram irregularmente pacotes massivos de envio de mensagens contrárias ao PT, com conteúdos ofensivos a Fernando Haddad pelo Whatsapp. De acordo com a matéria, os contratos chegam a 12 milhões de reais e entre os compradores estava o dono da Havan Luciano Hang, que apoiou (e continua apoiando) publicamente Jair Bolsonaro. Segundo a matéria as empresas compraram de companhias especializadas um serviço chamado “disparo em massa” de mensagens no Whatsapp. Para isso, usou a base do próprio candidato ou partido ou uma base das próprias empresas que prestam o serviço, o que é ilegal (a legislação eleitoral não permite a compra de base de dados de terceiros) e que essas bases de nomes compradas oferecem segmentação por região geográfica e, às vezes, por renda, o que permitiu o uso sistemático e organizado de mensagens para um público específico, influenciável.
Pouco depois da publicação da matéria e sua repercussão, o TSE abriu uma ação para investigar o uso ilegal do Whatsapp para impulsionar mensagens mentirosas por meio da compra de pacotes de disparos de torpedos. No entanto, não houve nenhuma consequência para a chapa vencedora.
Continua na segunda parte: As novas tecnologias podem ser utilizadas para a construção da democracia?
Leia outro artigo do mesmo autor:
O nepotismo na política brasileira
Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Homero de Oliveira Costa