Na luta em favor da ciência, a disseminação de fakenews e um baixíssimo nível geral de informação científica formam o terreno fértil para o obscurantismo, a intolerância e a desinformação
(Homero Costa)
Os incêndios na floresta amazônica têm sido objeto de atenção global. Um relatório divulgado pelo Projeto de Monitoramento da Amazônia Andina (MAAP) apresenta dados sobre queimadas e desmatamentos na Amazônia e analisa a relação entre incêndios e desmatamentos em 2019.
O relatório documenta numerosos casos e afirma que pelo menos 52,5 mil hectares (o equivalente a 72 mil campos de futebol) foram desmatados desde o início de 2019 no Brasil. A maioria das ocorrências foi observada no Estado do Amazonas onde mais de 15 mil (15.606) hectares foram desmatados e depois queimadas, mas também em Rondônia e no Pará, com numerosos focos de incêndio.
Também foram detectados incêndios atingindo a vegetação nativa em ecossistemas menos úmidos, incluindo outros países, como parte da floresta seca da Bolívia e o Cerrado brasileiro.
Os dados disponibilizados mostram que as imagens de fogo na Amazônia não correspondem à queima de trechos de floresta tropical, mas em áreas desmatadas intencionalmente para depois serem queimadas com o objetivo de posterior uso agrícola e pastagem.
O relatório também mostra exemplos de incêndios “detectados recentemente” nos territórios indígenas Kayapó e Munduruku. A área queimada nas duas reservas indígenas totalizou 24 mil hectares e 700 hectares, respectivamente. Em março de 2019 já havia sido detectado grandes incêndios florestais no norte de Roraima, incluindo queimadas próximas ao território indígena Yanomami.
O principal resultado da análise dos dados do Relatório foi o cenário generalizado de desmatamento, seguidos por incêndios.
Outro órgão importante de pesquisa, com dados consistentes e relevantes sobre a Amazônia, é o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), responsável pelo monitoramento oficial do desmatamento na Amazônia, que desde a década de 1980 acompanha as mudanças no solo da Amazônia Legal.
Em 2017 o INPE criou a plataforma Terra Brasilis, uma importante ferramenta de acompanhamento dos incêndios e desmatamentos na Amazônia. Nela são disponibilizados diversos dados e gráficos que permitem analisar a taxa de desmatamento por estados, municípios, unidades de conservação etc.
De acordo com o INPE, entre janeiro e agosto de 2019, as queimadas em terras indígenas aumentaram 88% em comparação com o mesmo período de 2018. E o desmatamento na Amazônia tinha aumentado 34% em maio e 88% e junho e 278% em julho de 2019, na comparação com os mesmos meses de 2018. Os dados são do Deter (Detecção do Desmatamento em Tempo Real), sistema do INPE. Em junho de 2019, o Deter havia divulgado dados em que se constatou o crescimento de 90% no desmatamento em relação a junho de 2018.
Face aos números constatados, qual foi a postura do governo? Desqualificar o INPE, demitindo seu diretor. Ou seja, em vez de reconhecer a sua veracidade e tomar providências cabíveis, o governo afirmou que os dados eram mentirosos e manipulados. E ainda que o presidente do INPE deveria estar a serviço de alguma ONG, e estas poderiam estar por trás dos incêndios como retaliação contra o governo por causa da suspensão de um repasse de US$ 33,2 milhões da Noruega ao Fundo Amazônia.
O fato é que as medidas do governo ajudaram a enfraquecer ações de fiscalização de órgãos ambientais. Segundo Rubens Valente num artigo publicado no dia 29 de julho de 2019 no jornal Folha de S. Paulo, um “Levantamento feito pela Folha no sistema público de registros de multas do IBAMA mostra que o número de multas por crimes contra a flora caiu 23% nos seis primeiros meses do governo Bolsonaro, na comparação com a média registrada no mesmo período nos últimos cinco anos, o que inclui os governos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB)” e que “Entre janeiro e junho de 2019, foram 5.826 autuações. O ano com menos autuações dessa série, nesse mesmo período, até então era 2017, sob Temer, quando as multas somaram 7.051 (17% a mais do que em 2019).
Mas estes acontecimentos em relação aos dados sobre desmatamentos e queimadas na Amazônia revelam também aspectos preocupantes, que são as tentativas de negar evidências cientificas por parte do governo num quadro mais amplo de desqualificação do saber (como expressam os cortes de verbas para as universidades públicas etc.)
O que dizer de um país cujo presidente nega consensos científicos (sem argumentos convincentes para se contrapor), tem uma ministra (da Agricultura) que é tida como a “musa do veneno”, um ministro das Relações Exteriores que considera as mudanças climáticas uma “ideologia” das esquerdas e o ministro do Meio Ambiente, réu em processos ambientais, que considera questões ambientais como secundárias?
No artigo O ministro das Relações Exteriores do Brasil afirma “não haver catástrofe climática, Anthony Boadle faz referência ao ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araujo, que numa palestra na Heritage Foundation de Washington, um dos principais think tanks conservadores dos EUA, no dia 11 de setembro de 2019, negou que o Brasil esteja queimando a floresta amazônica e que havia um alarme infundado sobre a mudança climática global (que) ameaçava a soberania brasileira. Segundo o ministro num discurso intitulado “O Brasil voltou”: “Não há catástrofe climática” e há falta de provas científicas sobre as causas do aquecimento global e que “os defensores da mudança climática estão despertando o alarmismo com objetivos políticos, parte de uma conspiração de esquerda contra os Estados Unidos e o Brasil, cuja soberania está sob ataque”.
Para o ministro, a ameaça enfrentada pelo mundo hoje não são as mudanças climáticas, mas a ideologia e atacou o que chamou de “climatismo” e “globalismo” e atribuiu o aquecimento global a uma “conspiração marxista”.
Sobre a questão climática, o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) tem alertado sobre a gravidade da situação atual do planeta, mostrando que o aquecimento do sistema climático e a influência humana sobre o clima são inequívocos e que são necessárias reduções substanciais e contínuas de emissões de gases de efeito estufa.
Os relatórios do IPCC são elaborados com base científicas e endossadas por Academias e associações científicas do mundo, como a American Geophysical Union; American Chemical Society; American Association for the Advancement of Science; Geological Society of America; National Research Council; American Physical Society; American Meteorological Society, entre outras. (Luiz Marques Negação da ciência ganha força em nacionalismo que une esquerda e direita, Ilustríssima, Folha de S. Paulo, 6 de janeiro de 2019).
No artigo acima citado, Luiz Marques afirma que quem põe em dúvida evidências científicas “deve apresentar argumentos convergentes e convincentes em sentido contrário. Na ausência destes, contestação tornam-se simples denegação irracional, enfraquece o poder persuasivo da evidência, milita em favor da perda da autoridade da ciência na formação de uma visão minimamente racional do mundo e turbina a virulência das redes sociais, dos ‘fatos alternativos’, da pós-verdade, do fanatismo religioso e das crenças mais estapafúrdias e até há pouco inimagináveis”.
Para ele, o negacionismo climático é “só mais uma dessas crenças, ao lado do criacionismo e do terraplanismo e seu repertório esgrime as mesmas surradas inverdades, mil vezes refutadas: os cientistas estão divididos a respeito da ciência do clima, os modelos climáticos são falhos, maiores concentrações atmosféricas de CO2 são efeito, e não causa, do aquecimento global e são benéficas para a fotossíntese, o próximo mínimo solar anulará o aquecimento global, não se deve temer esse aquecimento, mas a recaída numa nova glaciação etc.”
O resultado disso, como tem ocorrido no Brasil, inclusive entre ministros, é a negação de evidências científicas e para isso contribui “diretamente ou através da Donors Trust e da Donors Capital Fund, por exemplo, as corporações injetam milhões de dólares em lobbies disseminadores de desinformação sobre as mudanças climáticas”.
Num país em que a desinformação é grande, há um uso contínuo e sistemático de fakenews, um baixíssimo nível geral de informação (e formação) científica, torna-se uma presa fácil de manipulação, um terreno fértil na agenda negacionista da extrema direita e “a abundância dos meios colocados à disposição da desinformação”. Este me parece ser um dos aspectos mais relevantes e um enorme desafio na guerra contra a ciência, ou seja, dos que, em nome da ciência, lutam contra o obscurantismo, o atraso, a intolerância e a desinformação.
Referências:
Leia outro artigo do mesmo autor:
Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Homero de Oliveira Costa