Para urbanista, modernidade não é sinônimo de verticalização Entrevistas

quinta-feira, 12 setembro 2019

Professora Ruth Ataíde, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFRN, fala sobre o Plano Diretor de Natal

“O Plano Diretor (PD) é uma lei que orienta como deve ser o uso e a ocupação da cidade, ou seja, o que pode ser construído e que tipos de atividades podem ocorrer em determinadas áreas do município. Além disso deve possuir definições sobre as áreas de preservação ambiental e cultural.” Essa definição do plano diretor, ora em discussão em Natal, talvez seja o único ponto onde há unanimidade sobre esse tema que atinge a vida de todas as pessoas que moram, trabalham ou visitam a cidade.

Para se ter uma ideia da importância da lei, que será votada ainda nesse ano pela Câmara Municipal, ela define, por exemplo, se populações que estão instalados há mais de cem anos em áreas próximas à orla terão instrumentos legais que lhes defendam da especulação imobiliária. A proibição de remembramento de lotes impede que grandes construtoras comprem individualmente vários terrenos de pequenos proprietários para a construção de altos edifícios no bairro de Mãe Luiza. A mesma regra não se aplica a Petrópolis, distante apenas dois quilômetros de Mãe Luiza, mas cujo preço do metro quadrado é bastante superior.

Depois de participar do Seminário realizado pela Fecomercio e IAB-RN, Nossa Ciência entrevistou a professora Ruth Ataíde, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutora em Pensamiento Geografico y Organización del Territorio pela Universidade de Barcelona, Ruth tem enorme produção apresentada em eventos científicos nacionais e internacionais. Coordenou o projeto Olhos da Ribeira , classificado em primeiro lugar no Concurso BID UrbanLab Brasil, realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Caixa, Ministério das Cidades e Prefeitura de Natal e ganhou o Concurso Público Nacional de Ideias para Projeto de urbanização da Praia de Ponta Negra – Natal/RN, realizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, em 1995.

É primeira autora das Análises e proposições ambientais e urbanísticas sobre as propostas de regulamentação das Zonas de Proteção Ambiental (ZPAs 3, 6, 7, 8, 9 e 10), no município de Natal, realizadas entre 2010 e 2012.

Como coordenadora do Fórum Direito à Cidade, juntamente com a professora Amíria Brasil, do Departamento de Políticas Públicas da UFRN, ela tem críticas severas ao posicionamento público adotado pelo prefeito Álvaro Dias sobre o Plano Diretor. Para ela, quando o prefeito afirma que o atual Plano Diretor de Natal é atrasado e que ele vai se empenhar em modernizá-lo, ele está tomando partido de apenas um entre os vários grupos interessados nessa discussão.

Garantindo que é necessário desmistificar o conceito que transforma em sinônimos cidade moderna e cidade vertical, a professora defende que o PD de Natal é moderno porque ele respeita as diferenças e vê a cidade como um ambiente frágil e que precisa ser protegido.

A urbanista entende a discussão e a disputa pelo território, porém assume como princípio a justiça sócio-espacial e ambiental, afinal todos os cidadãos e cidadãs de Natal tem direito a estar e morar na cidade. Ela defende que não há lugares piores nem melhores para o segmento que detém renda; e que se esse segmento pode pagar por um imóvel, é necessário uma discussão sobre quais benefícios ele pode reverter para a gestão pública.

Leia a entrevista:

Nossa Ciência: O que é e por que uma cidade precisa do plano diretor?

Ruth Ataíde: A Constituição Federal de 1988, a chamada constituição cidadã, diz que o plano diretor é o principal instrumento desenvolvimento urbano do município. Ele é um instrumento urbanístico que orienta a ação dos agentes públicos e privados na construção desse espaço, ou seja, ele estabelece regras, indicando como é que cada um de nós, cidadãos e cidadãs, podemos atuar nesse espaço. O interesse coletivo se sobrepõe ao individual.

NC: Orienta a ação de indivíduos e de grupos…

RA: Exatamente. De todos, indivíduos e grupos, e aí onde a gente entra com a discussão dos diversos segmentos, agentes que atuam, segmentos empresariais, a população geral, setor do comércio, a academia, a indústria, tudo isso se forma para produzir a cidade. Esses grupos não atuam sozinhos, atuam coletivamente. Agora mesmo, nessa discussão recente, é possível você ver como é que tem determinadas associações, determinados grupos articulados para defender os seus interesses. Todos são legítimos. O importante é que a gente consiga entrar no entendimento do que é melhor para o coletivo. O Estatuto da Cidade, que é a lei federal do desenvolvimento urbano, obriga que o plano diretor seja feito com ampla participação popular. A cada momento que se retoma um processo de elaboração ou de revisão, como é o caso de Natal, esse processo se estabelece – ou ele é obrigado a se estabelecer. Em Natal está acontecendo, embora, no meu entendimento, com muitos problemas, com alguns vícios de quem está conduzindo, de achar que está abrindo um processo de participação popular, apenas por determinação da lei e não por entender que o planejamento depende disso. Eu, como estou nessa discussão há muito tempo, desde a década de 1980, quando ainda era recém formada, antes de ser professora, vejo que há sempre interesses relacionados ao mercado, que como eu já disse são legítimos. Esses segmentos entendem que eles só seriam contemplados se o plano diretor atendesse marcadamente esses interesse no que diz respeito a liberar ao máximo o potencial construtivo e o plano diretor impõe limitações dependendo da configuração geográfica do município.

NC: Há críticas relacionando a situação de Natal à de outras cidades…

RA: Nós temos ouvido muitas referências a outros planos diretores que adotam procedimentos que tem a ver com a geografia deles. No caso de Natal, a gente tem uma geografia que é muito particular e quase única, por conta do sítio na orla com relevo de grandes manchas de dunas, cobertura vegetal. Há mais de 30 anos estudamos isso e temos dito que nós podemos ocupar, morar bem, tornar uma cidade agradável, mas protegendo esses espaços e no nosso caso esses espaços se chamam Zonas de Proteção Ambiental. Aplicamos instrumento do controle de gabarito, que varia em determinado lugar, com base em princípios relacionados com o que a gente entende que o município tem valor e deve ser preservado.

NC: Qual é sua avaliação da afirmação do prefeito Álvaro Dias de que o atual Plano Diretor é um atraso para Natal?

RA: O nosso Plano Diretor, como instrumento de urbanismo no contexto brasileiro, na minha concepção, é moderno. Ontem mesmo (Mercado se organiza para intervir no novo Plano Diretor de Natal) um dos convidados do evento, o professor Carlos Leite afirmou que na América Latina o Estatuto da Cidade, no Brasil, e a Lei de Desenvolvimento Urbano Nacional, na Colômbia, são referências mundiais. O nosso PD tem uma base muito sentada nesse normativo federal, então o moderno ai é uma questão de concepção. Eu posso me considerar moderna, mas não necessariamente reproduzir vícios e costumes de outros lugares. O moderno a que o prefeito está se referindo, e eu, que também estava no evento, fiquei também muito estarrecida com a fala dele porque ele está reproduzindo uma fala de um segmento, que é o segmento que entende que modernizar é verticalizar e isso não é sinônimo. O próprio prefeito deu exemplos de cidades europeias que não são verticais e que são exemplo de cidades humanas. O professor Carlos Leite também fez questão de frisar isso. A gente precisa desmitificar esse conceito do moderno. No meu entendimento, o plano é moderno porque ele respeita as diferenças, vê que a cidade tem um ambiente frágil e que precisa ser protegido – por isso tem Zonas de Proteção Ambiental. O PD vê que a cidade tem populações pobres, morando em diversos lugares, inclusive desde o início Século 20, como na orla, e que elas estão ali com direitos e é ali que elas moram, é ali que elas trabalham, é ali que elas construíram a vida urbana delas, suas relações. Essas também são áreas que o PD protege, classificando-as como Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS).

Representantes de entidades empresariais presentes na discussão do novo PD do Natal. Foto: Mônica Costa

NC: Os empresários têm sérias restrições às AEIS…

RA: Eles estão é preocupados com as áreas que tem alto valor de mercado e isso que deve ser dito: o problema é que o valor da terra é muito alto Talvez o que fundamente o argumento deles, que o plano é um atraso, é que eles não conseguem construir em bairros onde o valor da terra é muito alto, o edifício sairia mais caro, mas isso não é culpa do plano e isso não está sendo dito.

NC: O prefeito disse que vai atuar para que o próximo Plano Diretor leve Natal à modernidade…

RA: Se a Prefeitura, através da Semurb, abriu um processo participativo, fazendo e respeitando – e fez correto, o que está estabelecido no Estatuto (da Cidade), não cabe ao prefeito dizer qual é a visão dele sobre a cidade. Não pode fazer a defesa que contraria os interesses do coletivo. É como se ele nos dissesse assim, ‘vocês estão num processo participativo, mas isso pode não adiantar nada, por que eu vou fazer o plano que eu quero’. As palavras dele podem ser interpretadas assim. Eu fiquei muito incomodada e triste por que, afinal de contas, eu posso não ter votado nele, mas ele é o prefeito e acho que é não assim que o gestor devia se conduzir.

NC: A senhora fez uma pergunta ao professor Carlos Leite e ele não respondeu. Que pergunta foi essa e qual era a resposta que a senhora esperava?

RA: Ele fez uma exposição com muitos elementos importantes para a reflexão dessa discussão e ele foi muito claro sobre densidade, que é exatamente o que gera mais disputa. Ele disse que a ONU estabelece como alta a densidade de 250 habitantes por hectare. Em Natal, já tem bairros, inclusive na orla, com densidade de 700 habitantes por hectare, em média. Quase três vezes o que a ONU estabelece como máximo. Então, um pouco para trazer a reflexão daqueles que estão pautando aumentar mais isso, eu fiz a pergunta: Como ele explicou muito bem e limitando a 250. Ora, se nós já temos somente na orla, num trecho da orla, quase o triplo, como é que se quer aumentar mais ainda?

NC: Mas o próprio Carlos Leite apresentou o dado de que Natal tem densidade de menos de 50 habitantes por hectare. Ele chegou a comparar Natal a um paciente com febre de 41 graus…

RA: A densidade que ele apresentou é a densidade média do Município inteiro. A densidade do município é calculada sobre a população que mora e a sua superfície. Mas nessa superfície tem as dunas, todas as áreas que não são ocupadas, os terrenos livres. Ele disse também que São Paulo tem (densidade de) 78, um pouco mais só do que Natal. Isso é a densidade que está nos dados do IBGE. O que eu estou falando é a densidade que o nosso plano já projeta. Então, o que nós não entendemos é por que aumentar, se esse próprio segmento não está conseguindo usar esta densidade que já é legal, que já está no plano e foi nesse sentido que eu fiz a pergunta. São duas informações que tem uma fonte diferente

NC: O prefeito afirmou que Natal perdeu cerca de 300 mil habitantes desde 2010. Pensando na cidade como um corpo, isso é normal, é saudável?

RA: Essa também é uma frase muito enganosa, cheia de pegadinhas. Não há nada que diga que a população que foi morar na Nova Parnamirim, por exemplo, e lá ocupou por que conseguiu comprar, compraria em Petrópolis. Então, tem uma informação ai que deve ser emitida com mais cuidado. Novamente tem um elemento que é o valor da terra. Esta população que comprou lá, não compraria aqui, nos bairros a que eles estão se referindo. Mas isso é uma outra discussão que tem que ser aprofundada tecnicamente. Então, fazer essa ligação é que está errado. Tem a ver com a dinâmica urbana da própria região metropolitana… Não se pode também ficar apontando que a mudança é ruim… e os vizinhos como é que vão entender isso? Por que os vizinhos também estão fazendo suas ações afirmativas para atrair… E é tudo na Região Metropolitana.

Bairro da Ribeira. Foto: PMN

NC: Há dados que indicam que três bairros antigos de Natal – Alecrim, Cidade Alta e Ribeira perderam moradores…

RA: Como eu vejo o Município de Natal como um município polo que deveria, entre outras coisas, trabalhar para agregar com os municípios da região metropolitana. Mais do que entender como disputa, trabalhar de forma articulada. Uma ação de região metropolitana poderia deixar isso mais claro. Não é essa mobilidade populacional que justifica a perda de população e mais: nos bairro centrais tem outros aspectos de muitos anos relacionados à desocupação, principalmente Ribeira e Cidade Alta, quando ficou ali só comércio e (no) comércio, as pessoas não moram, só vão trabalhar e sair. Então, são muitas discussões que estão implicadas sobre urbanismo.

NC: A Secretária de Meio Ambiente de Fortaleza apresentou um modelo no qual há uma troca licenças por equipamentos sociais. Esse modelo pode ser adotado?

RA: Pode e é muito adotada. O professor Carlos Leite trouxe (exemplos) de Medellin. Só que o equipamento que a palestrante de Fortaleza apresentou não é equipamento social, porque ela dá um exemplo de shopping center! Onde é que shopping center é equipamento social? Os equipamentos de Medellín, que também são equipamentos sociais encravados nos espaços vulneráveis, são bibliotecas, escolas, praças, tudo articulado com o sistema de transporte. Fortaleza tem vendido a ideia de sucesso na gestão, e a minha crítica como estudiosa é que é um sucesso que privilegia ação de alguns segmentos, os ligados ao setor econômico. Na nossa visão, esse não deve ser o caminho que Natal deve adotar, mas estamos no processo e entendemos que o debate é aberto e espero que o plano saia de acordo com o debate, não com a intervenção do prefeito como ele mencionou ontem.

NC: Como tem sido a atuação do Fórum de Direito à Cidade?

RA: Eu faço parte e estou coordenadora do Fórum de Direito à Cidade, que é um projeto extensão, que nós abrimos no Departamento de Arquitetura, em parceria com o Departamento de Políticas Públicas, tem professores dos dois departamentos à frente do projeto, para articular debate sobre a cidade. Neste momento, o debate mais importante é o Plano Diretor. Como a revisão do plano diretor tinha sido lançada em 2017, ficou um pouco adormecido e foi retomado agora. Desde 2018, o Fórum fez vários debates. Também trouxemos especialistas nacionais – e vale dizer que mesmo com uma especialista de renome internacional, que foi a professora Ermínia Maricato, consultora da ONU em Urbanismo, nenhum gestor foi assistir, como o fizeram com forte presença na reunião da Fecomercio, então aí a gente já vê a diferença de como as relações se estabelecem.

Leia também:

Cidade tem que garantir um lugar para todos

Para saber mais sobre:

Estatuto das cidades

Fórum de Direito à Cidade

O Fórum também tem uma página no Facebook (direitoacidadeufrn)

Sobre o Plano Diretor de Natal

Mônica Costa

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